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Sem grandes aspirações e sonhos, Conor passa por um momento delicado: seus pais estão à beira do divórcio e enfrentam problemas financeiros. Ele é transferido para uma escola católica, onde sofre bullying dos colegas e do autoritário diretor, que abusa de seu poder para doutrinar e espancar os alunos. As paredes descoloridas, a zona que precede as aulas e o fato de um professor confundir a língua que ensinará dizem muito sobre uma instituição falida e corrompida.

O plano subjetivo no primeiro dia de aula evoca o temor de Conor, que se depara com olhares provocativos, no entanto, as cenas mais assustadoras são, sem dúvida alguma, as que ele divide com o diretor, principalmente a que este limpa violentamente o rosto do protagonista na pia.

Ambientado na década de oitenta, “Sing Street” escancara escândalos, é uma obra bastante pessoal para o diretor John Carney, que frequentou esse tipo de escola e nasceu em Dublin. Todavia, seu roteiro foca no amadurecimento do jovem, a busca por significados em uma existência ainda embrionária.

Ela está do outro lado da rua. A baixa profundidade de campo nos impede de vê-la, estamos na perspectiva de Conor. É como se Raphina fosse uma miragem, um ser intocável e distante. Inibido pelo bullying e sem ter muito a dizer, o protagonista inventa que tem uma banda e pergunta se a moça – uma modelo – não quer participar de seu vídeo clipe.

O conjunto, que dá nome ao título, é rapidamente formado, reunindo os rejeitados da escola. A música, a princípio, é uma pose, uma desculpa para conquistar uma garota que Conor mal conhece e já endeusa. Seu arco serve para modelar e encontrar o formato correto para tais prioridades, que, gradativamente, ganham complexidade.

A beleza de Raphina fica em segundo plano, seu interesse real é passar o maior tempo possível com a moça e conhecê-la a fundo, não à toa, quando oferece uma carona de bicicleta, anda feito uma tartaruga. O momento que define a profundidade de seus sentimentos por ela é aquele em que Conor relata para o irmão exatamente o que passa em sua mente ao olhar para Raphina. Carney potencializa as palavras a partir de um travelling em sua direção.

O protagonista não está entrando em uma zona segura. Sua paixão é órfã, tem potencial para ser modelo, no entanto, perde seu tempo com homens mais “poderosos” e interesseiros, responsáveis por mantê-la numa perigosa redoma que limita seu tamanho, impedindo saltos maiores.

Conor é um jovem corajoso, não teme obstáculos e, por mais desanimado que fique ao vê-la com outro cara, não se acomoda nem chora, pelo contrário. A música se transforma num combustível insubstituível, uma espécie de terapia particular na qual versos cortantes, presos em seu peito, são postos em folhas de papel. Quanto mais sofre e passa por experiências contrastantes, melhor compositor Conor se torna. Em determinado momento, Raphina diz que o amor é “feliz e triste” e que gostaria de escutar algo alegre. De fato, o amor jovial é um paradoxo constante, um verdadeiro trampolim de emoções que, entretanto, tende a nos manter por mais tempo na superfície, não no ar. As músicas do protagonista são melancólicas por um motivo: sua honestidade é inegociável. Somando sua disponibilidade emocional a uma figura extremamente instável, ao divórcio dos pais e a silenciosa depressão do irmão, seu melhor amigo, educador musical e conselheiro, podemos concluir que nada de muito otimista pode sair de sua mente.

A banda deixa de ser um meio, assumindo a condição de estilo de vida. As constantes mudanças de figurino ressaltam a sua busca por autoconhecimento e as diferentes influências que surgem em sua vitrola. A nostalgia é um elemento-chave em “Sing Street”. Duran Duran, The Cure, Hall & Oates e Spandau Ballet formam a nova personalidade de Conor, que não se escora em paredes temendo xingamentos na escola. Ele compreende o vazio de Barry, o vácuo que ocupa sua existência, o obrigando a chamar a atenção dos demais através de punições. A boa música estabelece caráter, aflora a sensibilidade e é culturalmente relevante.

A montagem, além de ser dinâmica e progredir num ritmo satisfatório, explora o crescimento da banda, como, por exemplo, na sequência em que Conor escuta “Maneater” e, no corte seguinte, está ensaiando uma canção claramente influenciada pela anterior.

O protagonista imagina situações e, às vezes, vai a lugares que não gostaria. Na passagem de som para o baile, ele sonha com um salão colorido, figurinos estilizados, danças coreografadas, os pais felizes, o irmão revigorado e Raphina no centro, quando, na realidade, há meia dúzia de figurantes insatisfeitos no local.

Ela é uma criatura difícil e fascinante. Os sentimentos de Conor são recíprocos, contudo, Raphina não parece disposta a gostar de si. Seu pai morreu e sua mãe está internada em um hospício. O convívio familiar era conflituoso, praticamente inexistente. A moça aceita qualquer lixo, não acredita na própria felicidade, assume verdades absolutas e nega um mero vislumbre de luz. Conor é um fio de esperança, por isso ela se afasta com tanta facilidade. Raphina não é a jovem risonha e maquiada, sua versão real está no choro ao escutar as músicas do protagonista. Ela tira a maquiagem e olha para o espelho, encarando um rosto desconhecido. Conor consegue fazer com que Raphina se sinta quase especial e bonita sem os incontáveis produtos que usa. O momento definitivo para o fortalecimento da relação é aquele no qual Conor não permite que ela o desmereça, abandonando um diálogo rispidamente. É ali que Raphina percebe a preciosidade que tinha e que, pela primeira vez, podia ser feliz. Carney aproxima o casal gradualmente. Em uma sequência, por exemplo, ele inicia com um plano conjunto, partindo para close ups, que se tornam recorrentes. O diretor compreende a magnitude dos sentimentos escondidos nesses rostos e não cansa de observá-los.

O desfecho, que, para alguns soa brega ou “feliz”, para mim, é uma homenagem à irresponsabilidade jovial. Um brilho de otimismo e esperança que, infelizmente, se esvai com a idade. Carney é cuidadoso, seu fim não é irreal, seus personagens optam pela chance de dar certo. Ficamos com a certeza do instante e com a incerteza do que o futuro lhes reserva.

A reação de seu irmão, que cumpre um papel importantíssimo na trama – dramático e cômico -, é belíssima. Ele era o músico talentoso, aquele era o seu sonho e ver o querido irmão ali o deixa orgulhoso. Esse afeto é transmitido em diferentes situações, concentradas em diálogos orgânicos e inspirados. “Nenhuma mulher ama um homem que ouve Phil Collins”.

Sobre a banda, o que posso dizer é que as músicas são fantásticas e que o processo criativo é muito bem explorado por Carney.

A câmera lenta reforça a sensação de pertencimento, de fazer parte de uma tribo e de se sentir “descolado”.

Eamon, o gênio por trás das composições, é o membro mais interessante e talentoso, todavia, o roteiro não esconde que seu papel se limita a esfera musical. Ele e Conor podem ser comparados a Dave Gahan e Martin Gore, do Depeche Mode. Barry é um caso à parte, o único que tem um arco pessoal, amadurece e acrescenta bastante comicamente – suas reações são sensacionais.

Dublin é uma cidade melancólica, não à toa, a cena que desperta maior esperança no espectador se passa numa chuva torrencial, em meio a uma forte neblina. A fotografia mescla os tons, há momentos mais ensolarados, que retratam situações específicas, mas, de modo geral, esse é um filme frio, inclusive em suas paisagens. Dito isso, são as fantásticas escolhas musicais que ditam o tom contagiante do espetáculo.

Não poderia deixar de citar o cuidado de Carney ao enquadrar a mãe de Conor de costas para a família, sentada na saída da casa, poucas cenas antes do divórcio oficial. A residência, por sinal, é escura e dominada por cores pouco marcantes. O clima de término e tristeza é estabelecido desde o início, se agravando ao longo da trama.

Se eu falei do figurino do protagonista, me sinto na obrigação de comentar sobre o de Raphina, cujas cores e combinações chamativas são uma tentativa de se sobrepor ao seu estado natural. No momento definitivo, citado acima, ela, “por acaso”, está com um casaco azul claro e com o rosto machucado – o fardo finalmente pesou. Sutilezas assim engrandecem um filme espetacular.

“Sing Street” é a obra prima de um cineasta apaixonado por música.

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