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Diferentemente de “Help!”, lançado em 1965, os Beatles estavam entusiasmados com a ideia de fazer um filme em 1964. A “Beatlemania” estava em seu auge, a fama não desagradava e os garotos de Liverpool viviam como quatro irmãos. “A Hard Day’s Night” é o resultado de uma fase de muita farra, descontração e música de primeiríssima linha.

Na icônica abertura, as garotas correm histéricas atrás deles e a montagem, apesar de ressaltar o caos através de cortes constantes, não gera desconforto, pelo contrário. Há uma certa jovialidade charmosa e intocável naquela sequência, que envolve gags sensacionais dos músicos fugindo e se escondendo das fãs.

No trem, além de John, Paul, George e Ringo, um senhor se senta no mesmo vagão. “Que velhinho?” e “aquele é meu outro avô” são frases que indicam o papel do “vovô McCartney”, que impressiona pela limpeza e está sempre tramando algo para escapar das garras do neto a fim de cair na jogatina. O contraste entre as personalidades dos membros da banda é perfeitamente trabalhado. As interações são comicamente únicas e ressaltam o forte laço que extrapolava o palco.

Capaz de deixar os empresários enlouquecidos, John é o mais carismático, tem sempre uma carta na manga e não esconde seu fascínio pelas moças que cruzam seu caminho. Para os fãs inveterados da banda, é um verdadeiro deleite vê-lo em cena, não apenas por ser o “grande John Lennon”, mas pela leveza que ele traz ao espetáculo, digna de um jovem curtindo a vida despreocupadamente. Seu timing cômico é excelente, em determinados momentos ele me lembrou Peter Sellers no início da carreira.

Desde o princípio, Paul era o mais responsável e o roteiro não esconde isso. Além de demonstrar uma excessiva preocupação com o “vovô garoto”, ele é quem se comunica melhor com a mídia, esbanjando um profissionalismo que se tornaria recorrente nos anos posteriores. Dito isso, Paul, assim como os demais, parece ter amado a experiência.

Seu senso de humor se assemelha ao de George, o mais quieto dos quatro. O jeito blasé do guitarrista é impagável, proporcionando risadas genuínas e inesperadas.

-Qual o nome desse corte de cabelo?

-Arthur.

Ele abre o armário do quarto e encontra um homem escondido, no entanto, não grita ou reage espantado, só avisa aos amigos para que tenham cuidado ao guardarem seus paletós. Esse tipo de calma é particular de George e são as diferentes personalidades que o tornam intrigantes e fortalecem a amizade que se confunde com uma relação familiar.

O roteiro brinca com a condição de Ringo, “o rejeitado”. Ele tem o seu próprio arco, se separa do grupo e tem tempo para perceber que sem os outros, nada faz sentido, e que os Beatles não existiriam sem a sua singularidade. “Não tem graça sem eles”. Inseguro e vulnerável, Ringo é alvo de piadas, todavia, seus colegas reconhecem sua importância no momento mais “tenso” do filme. Não há um gosto amargo em “A Hard Days Night”, tudo é doce e mágico.

-Você tem complexo de inferioridade.

-Por isso escolhi tocar bateria.

A escolha por negar uma trama convencional, dando liberdade para os astros interagirem organicamente e se movimentarem sem compromisso, não poderia ser mais acertada. Não queremos ver os Beatles interpretando personagens, queremos vê-los por aí, fazendo o que lhes der na telha. “A Hard Day’s Night” é também um documento histórico, já que a “Beatlemania” é retratada com extrema autenticidade. A rima entre a eufórica correria inicial e as reações incrédulas das fãs no show que marca o desfecho define o período – a montagem reforça a loucura com cortes incessantes.

Falando na montagem, na sequência em que a banda canta “And I Love Her”, uma série de fusões suaves tomam conta da tela, salientando a delicadeza da música. O diretor Richard Lester não se vale puramente da imagem dos rapazes para obter sucesso, seu filme é surpreendentemente ambicioso e possui uma linguagem sofisticada. As panorâmicas ganham, ao longo da obra, uma conotação cômica, aparecendo também na cena em que os quatro fogem de seus compromissos e correm por um terreno ao som de “Can’t Buy Me Love”. Se até então sua abordagem se baseava em planos fechados, que conversavam com os ambientes pequenos – estúdios, vagões, quartos e festas – e com a realidade claustrofóbica enfrentada pelos músicos, nessa sequência, Lester opta por planos abertos, brinca com a velocidade da imagem e com a própria mise en scéne. Eu não sei até que ponto a movimentação dos Beatles é improvisada ali, de qualquer forma, existe um forte senso de liberdade nas brincadeiras dos protagonistas. As filmagens aéreas desconstroem o que havíamos visto anteriormente. Os saltos em slow motion são esteticamente belíssimos e a piada com Ringo, que mal sai do chão, se encaixa brilhantemente.

Sim, são os Beatles, porém estamos diante de jovens na flor da idade, desesperados por diversão e farra.

A insistência por manter o quadro fechado, o uso de câmera na mão e das músicas dos gênios de Liverpool dão um tom documental a alguns momentos, um intimismo muitíssimo bem-vindo. Na cena do baile, por exemplo, temos a impressão de estar dançando naquele salão, e os cortes, que nos levam a aventura noturna do velhinho arruaceiro, elevam a comicidade da obra.

O zoom serve como uma rima para as arapucas do vovô. Sempre que ele pensa em algo mirabolante, Lester usa esse artifício.

As acrobacias para fugirem das fãs são de uma inventividade admirável – carros, saídas falsas…

“A Hard Days Night” assume um tom meio absurdista em determinadas sequências. Ao importunar um sujeito no vagão, eles seguem a provocação do lado de fora do trem e quando John brinca com seu barquinho na banheira, não o vemos saindo, deixando o empresário preocupado. Repentinamente, ele aparece na porta, como se nada tivesse acontecido. Analisando de maneira “cega”, nada disso faz sentido, vai contra o significado de continuidade, no entanto, Lester assume o non sense, inserindo camadas mais prazerosas de humor.

A perseguição final é labiríntica, exaustiva e ainda provoca o departamento policial, que adora focar em “alvos equivocados” – um verdadeiro show à parte.

As músicas dão um charme a mais ao filme e deixam os fãs do grupo em estado de êxtase.

“A Hard Days Night” é uma obra prima que esclarece algumas questões:

-John, Paul, George e Ringo eram amigos inseparáveis, não somente colegas de trabalho.

-O álbum que dá nome ao título é o melhor da banda.

-Richard Lester é um cineasta extremamente subestimado.

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