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No Central Park, em meio a neve, debaixo de uma ponte, Sean, marido de Anna, tem um ataque cardíaco e morre. A montagem rapidamente estabelece um paralelo com o nascimento de uma criança.

Dez anos se passam, a paisagem segue idêntica e a protagonista está prestes a se casar com Joseph, um sujeito que exala insegurança. Sua aura “perdedora” está em seu rosto desinteressante e em seu discurso no anúncio do noivado. Ele praticamente assume que Anna não o ama e que sua insistência e falta de amor próprio induziram a solitária moça, após inúmeras recusas, a aceitar o pedido.

Eis que, no fim da festa, um garoto, estacionado no canto do corredor como uma esfinge, bate na porta da casa e afirma ser a reencarnação de Sean – sim, soa bizarro. Anna tem duas opções: ser sarcástica e voltar ao que interessa ou ficar intrigada com a declaração e se debruçar na esperança de reencontrar o amor de sua vida. As risadas iniciais denotam espanto e nervosismo, no entanto, os recorrentes close ups não mentem, ela não esperava ver Sean novamente.

Os seres humanos acreditam no que bem entendem, na existência de um Deus, no Papai Noel, fantasmas e almas gêmeas. Crenças devem ser respeitadas, todavia, na maioria dos casos, expõem algo que as pessoas tentam ocultar. Se Anna amasse Joseph, não daria a mínima para um garoto de dez anos. O fato de sua expressão facial mudar radicalmente ao escutar o nome do falecido marido e de estar diante de sua possível reencarnação ratifica o seu distanciamento perante o presente.

No momento em que a protagonista decide acreditar que a criança é o seu marido, Sean se materializa naquele corpo. Anna está cega, a chama reacendeu e, obviamente, perturba todos os familiares, principalmente Joseph, que, a princípio, tenta ser maduro, rindo da situação, e, posteriormente, num ato que salienta sua insegurança, surta e agride o garoto.

A criança, que também se chama Sean, impressiona pela seriedade e por nunca desmontar. Jonathan Glazer deixa claro desde o início que seu filme não é sobre espíritos, mas sobre perda, dor e crença. Sean é exatamente aquilo que aparenta ser fisicamente. Como ele convence Anna e deixa sua família estarrecida? Disposta a revelar a verdade, a amante do falecido muda de ideia no último instante e esconde uma série de cartas num canteiro no Central Park. Sorrateiramente, Sean as pegou e assumiu verdades alheias.

Eu costumo dizer que as pessoas se tornam seres humanos de fato quando são capazes de enxergar e interpretar determinadas coisas. Aos dez anos, o garoto estava preso nesse limbo. Sean não decide ser “Sean” para magoar Anna, pelo contrário, por admirar, ainda que ingenuamente, suas intenções e palavras amorosas.

O espectador que conseguir fugir de uma visão objetiva, perceberá que estas são figuras absolutamente relacionáveis. Quem nunca, ao sair de uma sala de cinema, quis assumir outra personalidade? Acreditar naquilo que nos conforta é natural. Por mais absurdo que pareça, encontramos brechas para reviver algo que se foi e Anna, presa a um tortuoso e falho processo de luto, prefere fechar os olhos, prefere ser feliz.

Não existem verdades incontestáveis, nossas mentes e corações constroem realidades e universos próprios. O cenário, então, desaba. “Eu sou sua amante. Anna é sua esposa”. É demais para Sean, que abandona a rígida persona ao se chocar com a imperfeição humana. Na banheira, a protagonista se declara e olha apaixonada para seu marido; no minuto seguinte, está ao lado de uma criança qualquer – ela deixou de acreditar.

Ainda temos a mãe de Sean, que enfrenta a dor de “perder” seu querido filho, enfático ao afirmar que “aquele garoto idiota não existe mais”.

“Birth” é uma tragédia por todas as perspectivas, uma obra melancólica e tocante sobre uma mulher incapaz de vislumbrar um lapso de otimismo e alegria em sua existência. Presa a essa tortura e se acostumando com a dor, ela é surpreendida. Anna faz um esforço genuíno para se controlar e seguir em frente, mas suas forças, gradativamente, se esvaem.

Jonathan Glazer admira o rosto de seus personagens, seus close ups conferem intensidade e humanidade ao arco da protagonista, que demora a se acostumar com a “nova realidade”. Seu sofrimento e luta interna são impecavelmente trabalhados por Nicole Kidman, que oferece, talvez, a melhor performance de sua carreira. Ela não precisa de palavras, está tudo em sua feição. No teatro, o cineasta opta por um plano fechado longuíssimo e é ali que a atriz deixa o espectador hipnotizado. Quando o cunhado do falecido é surpreendido pelo nível de detalhamento das respostas de Sean, Glazer também usa um close up para realçar seu desconforto e espanto.

No jantar de noivado, a família inteira se junta em um canto, enquanto Sean aparece sozinho, no lado oposto – presente e passado. A abordagem de Glazer é elegante e sóbria, mas ele sabe a hora exata de movimentar sua câmera efusivamente, por exemplo, na sequência em que Joseph se descontrola. Em determinado momento, Sean repete várias vezes que não pode abandonar Anna e, ao vê-la partindo com Joseph, o garoto tem um colapso. A câmera lenta, acompanhada de uma trilha sonora grandiosa, enfatiza o impacto do desmaio para a protagonista.

A fotografia investe em tons acinzentados, mergulhando os personagens num mar de melancolia e incerteza. As sombras dão um aspecto fantasmagórico a Sean, além de refletirem a dúvida que todos têm em relação à sua natureza.

A direção de arte é espetacular, um dos pontos altos do filme. A imponente mansão de Anna contrasta com a personalidade de seus familiares, que desmoronam e se fragilizam na presença de um garotinho. A predileção por cores pouco marcantes conversa com a tristeza da protagonista. O verde do papel de parede tem a ver com o “sobrenatural” e o vermelho, muitas vezes escondido pela escuridão, possui diversas conotações: amor, violência, ódio…

Em um breve momento, vemos Anna deitada com um vestido bege e sua cama é da mesma cor – praticamente uma extensão, um ser paralisado.

A casa de Sean, em contrapartida, é pequena e apertada. O espaço, assim como o seu casaco azul, ressalta quão retraído e perdido o garoto se sente.

A trilha sonora do brilhante Alexandre Desplat compõe perfeitamente a narrativa, com temas delicados que combinam piano e instrumentos de corda.

Não poderia deixar de elogiar Cameron Bright. Sua performance está facilmente entre as melhores infantis da história do cinema. Ele concilia a infantilidade referente à sua idade através de gestos e da maneira que caminha, com uma maturidade impressionante.

“Birth” é uma obra prima, facilmente um dos melhores filmes lançados na década de 2000.

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