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A colagem de fotos de amigos se divertindo é um contraponto perfeito ao cemitério. Eram quatro e os três restantes vão ao funeral do falecido. Eles não gostam da formalidade, do falso luto e do discurso artificial. “Não vou para casa. Vou me embebedar”, avisa Harry. A partir daí, seguimos o trio numa jornada de quarenta e oito horas.

Cassavetes não está interessado numa trama, mas em formar um núcleo crível e forte. Através de situações e diálogos orgânicos, ele abre espaço para reflexões maiores. Eles conversam sobre esportes no metrô vazio, apostam em uma corrida andando, jogam basquete e nadam. No bar, onde ficam algumas horas, o grupo organiza um concurso de canto e é lá que as coisas ganham uma interessante dualidade.

Cassavetes ficou conhecido por improvisar. Seus filmes tinham um roteiro, no entanto, quem bate o olho em qualquer uma de suas obras, notará que os atores tinham total liberdade para se expressar. A maioria dos diálogos, a princípio, não diz muita coisa. Os personagens ficam em silêncio, pensam no que vão dizer, vomitam besteiras e falam demais. É difícil não se relacionar com amigos que ficam completamente embriagados em um bar. Eles parecem felizes, gargalham e se amam de uma maneira estranha, que somente quem tem amigos assim entenderá.

É real e visceral; quando Gus, Archie e Harry bebem, estão genuinamente bêbados, quando jogam basquete, são genuinamente péssimos, e quando discutem, se abraçam poucos minutos depois.
Após outras estripulias nas ruas de Nova Iorque, eles decidem ir ao trabalho, sem tomar banho mesmo, porém não aguentam a monotonia e dão apenas uma passadinha. Harry quer viajar e o trio parte para Londres, onde cochilam rapidamente e tentam a sorte num casino. A insegurança de Archie perante as mulheres é constrangedora, e o fato de sua acompanhante ser chinesa e não entender inglês é bastante revelador. Gus, com seu charme canastrão, é o que se sai melhor. As moças vão para o hotel, numa noite de puro prazer.

Já se passaram alguns dias desde o funeral e eles percebem que está na hora de voltar para casa.
Na primeira vez que assisti “Husbands”, me diverti muito com a intimidade e irresponsabilidade dos personagens; na segunda, fiquei ainda mais encantado com a facilidade de Cassavetes de transportar a realidade para a tela; na terceira, todas essas sensações se uniram a uma profunda melancolia.

O que leva os camaradas às ruas, aos bares e a outro continente é a morte de um amigo. O grupo parecia tão vivo e feliz nas fotos iniciais. O fim é aleatório – ou não – e só machuca quando sentimos na pele. Gus, Archie e Harry não são jovens, os anos estão passando e a juventude se esvaiu. Stuart não era mais velho, nem menos saudável. Num estalo, enquanto dormia, ele se foi. Pensamentos estranhos adentram nossa mente sem permissão, escancarando um medo universal. Alguns se escondem, outros fogem, na esperança de “recuperar o tempo perdido”. O que isso realmente significa?

Como o próprio título diz, os personagens são maridos. Em algum momento eu citei suas famílias? Não, porque eles não as amam. “Tirando o sexo, e ela faz muito bem, eu prefiro vocês”, afirma Harry.
A trajetória humana é marcada por regras, convenções das quais não conseguimos escapar. O amor deveria ser uma obrigação? Não vemos a esposa de Gus, ainda assim, ele pede a ela o seu passaporte, numa conversa telefônica. Quando Harry chega em casa, sua mulher reage apavorada. O que é aquilo? Por que aquelas pessoas estão casadas?

Os amigos, na tentativa de espantar seus fantasmas, alcançam o efeito oposto. Esse não é um filme sobre jovens que rompem o sistema. Os personagens aqui são homens, e devem agir como tais, não têm o direito de simplesmente farrear e mentir.

Eles até poderiam optar pela honestidade, mas não conseguem, pois, sem as convenções sociais, ficam tão perdidos quanto um cachorro sem o seu dono. Quando nos tornamos adultos? As coisas acontecem, somos engolidos e precisamos, de alguma forma, encontrar um equilíbrio e amadurecer. Nossos camaradas são, infelizmente, figuras patéticas. Seus empregos são somente fontes de renda, o termo “família” não significa nada, além da manutenção de uma máscara pesada e desagradável, e o cotidiano é pragmático.

Na última cena, a verdade vem à tona. Gus não está feliz, sua expressão facial denota dor, aceitação e tristeza. Eles estão preocupados com os presentes certos e com a aparência, não com os sentimentos.
Para piorar, os bons companheiros, em situações encobertas por Cassavetes com humor, se mostram machistas. O cineasta não defende o trio, pelo contrário, expõe a imaturidade a partir da normalização de comportamentos absurdos.

Não é nada fácil fazer com que o espectador sinta pena, repulsa e carinho por personagens. Sua câmera, na maior parte do filme, registra os acontecimentos, sem maiores preocupações. A abordagem do cineasta é quase documental, pouco intrusiva, crua e inteligente. O quadro é fechado para ressaltar a intimidade e gerar desconforto em determinadas sequências, como, por exemplo, aquela na qual Harry agride sua esposa. Em Londres, no hotel, Cassavetes agrupa os “casais” em um único quarto e utiliza panorâmicas a fim de salientar a falta de química e o incômodo das moças.

A escolha do diretor por não mostrar a família de Archie ratifica sua falta de traquejo com as mulheres. Não conseguimos nem imaginar ele se relacionando com alguém.

John Cassavetes, Ben Gazzara e Peter Falk eram grandes amigos na vida, o que, sem dúvida alguma, facilitou o trabalho dos atores. Todas as interações atingem um nível impressionante de realismo, me deixando em dúvida se alguma fala ali estava no roteiro. Os risos e a camaradagem estão na superfície e os intérpretes “escondem” com maestria a vulnerabilidade e a insegurança.

Cassavetes sempre foi muito empático com seus personagens. Sua câmera é desligada quando todo o necessário já foi dito e pontuado, o que talvez frustre aqueles que clamam por um desfecho clássico.
“Antes éramos quatro. Agora somos três e você quer ficar sozinho?”

Engraçado e deprimente; profundo e escapista, este é “Husbands”, a obra prima subestimada de John Cassavetes.

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