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Se as pessoas fossem tão empáticas quanto a diretora Patty Jenkins é em relação a Aileen Wournos, uma serial killer responsável pelo assassinato de sete homens, o mundo seria um lugar melhor. O cinema proporciona esse tipo de estudo, emprestando ao espectador lentes as quais nega no movimentado cotidiano.

O filme começa com a narração da protagonista, que sonha em ser bonita, rica e famosa. Um corte nos leva até ela, sentada num beco, no meio da chuva. Aileen sofreu abuso de seus familiares, foi estuprada e começou a se prostituir aos treze anos. Após um longo dia de trabalho, a protagonista vai a um bar, onde é abordada por Selby, que deseja apenas ter uma boa conversa com alguém. Bruta por natureza, Aileen, a princípio, enxota a pobre coitada, afinal, não é lésbica. Igualmente solitárias, as duas passam horas ali e percebem que estão diante de uma oportunidade.

“Monster” caminha por linhas inesperadas, foge do padrão da maioria dos filmes sobre assassinos, apresentando, na verdade, a história de uma mulher que quer fazer a coisa certa, porém sem as ferramentas para tal. Aileen era uma sonhadora, mas foi engolida por um furacão que distorceu sua visão sobre o mundo, a transformando numa figura sombria e desesperançosa. Ela entra no bar com cinco dólares e promete a si que só sairá viva caso algo aconteça. Selby é um presente divino, o anjo que veio à terra para lembrá-la que a vida pode ser mais do que uma sucessão de tragédias. A protagonista só quer ser amada e, por acreditar que praticamente todos os homens são detestáveis, a relação homoafetiva faz todo o sentido – o tardio autoconhecimento.

Jenkins não tem pressa, faz questão que o espectador compreenda a magnitude daquele envolvimento. A cena na pista de patinação, em que as duas se divertem, dançam e se beijam ao som de “Don’t Stop Believin” – o tema principal, responsável por diferenciar fases extremas – é marcante não apenas por mostrar uma paixão honesta e ardente, mas por conseguir clicar algo na nossa mente.

O espelho, fundamental no arco de Aileen, aparece pela primeira vez quando ela volta a se ver com algum glamour. Selby está morando com sua tia, foi expulsa provisoriamente da casa do pai, um católico fervoroso, e é convencida pela parceira a fugir. Aileen coloca o peso de sustentar a “casa” sobre si, então se candidata aos mais variados empregos, o que denota uma tremenda ingenuidade, já que não havia concluído nem o ensino fundamental. As roupas arrumadas dão algum tipo de esperança, todavia, a maneira como ela observa as pessoas, numa tentativa de emular o comportamento “normal”, é suficientemente poderosa para captarmos que aquele não é o seu lugar. Vulnerável e pressionada, Aileen relembra: “eu sou uma prostituta” – uma afirmação digna de pena. O espelho agora reflete a imagem de uma mulher suja de sangue, disposta a matar para sustentar o sonho da paixão. O vermelho está associado a extremos. Ela vai às ruas, entra em carros, é levada a lugares inóspitos, dispara a arma e pega a carteira. Suas justificativas para tais atos advém de uma mente perturbada e distorcida. A janela do carro aberto, a leveza do romance, a nova casa e a trilha revigorante refletem algo fundamental: a protagonista, agredida, humilhada e desprezada por anos, se sentia no direito de “revidar” por uma motivação nobre e transformadora.

Selby coloca Aileen num pedestal, dizendo coisas que ela sempre sonhou em ouvir, a tornando ainda mais sem noção. Jenkins usa as vítimas para construir o arco da protagonista, o que não é muito honesto, nem justo. O primeiro homem a espanca e ela simplesmente reage, luta pela sobrevivência; por outro lado, o último é um senhor que pretende ajudá-la, tem uma família e é cruelmente assassinado numa longa e angustiante cena. A cada morte, Aileen fica mais distante do que almejava. Narrativamente, essa opção funciona, entretanto, estamos falando de uma biografia, de pessoas que realmente morreram. Criar um raso juízo de valor a fim de conceber uma lógica interna ao filme não me parece correto.

A protagonista se coloca como a vítima, inventa cenários para manter sua fantasia intacta e se enfia, gradualmente, numa sanguinolenta areia movediça. Em determinado momento, ela poupa um cliente ingênuo e bondoso. Jenkins alonga um plano conjunto – o tempo para Aileen pensar. Esse senso de diferenciação e empatia se perde. Seu medo de perder Selby conversa com sua facilidade em atirar. Quando a pistola aparece no espelho, que divide sua imagem, temos certeza de que aquela Aileen não é a mesma da pista de patinação e de que o fim não será “feliz”. As mãos trêmulas denunciam a culpa que sente, não exatamente pelas vítimas, mas por ter colocado tudo a perder por falta de cuidado e excessos. Aileen era um corpo flutuante, disposto a se vender por uma merreca para qualquer sujeito. Selby é a razão para mudar uma condição irreversível, a esperança que transforma o amor numa arma de proporções homéricas, a única pessoa que a proporciona emoções prazerosas. No início do filme, Aileen já estava morta. Sua trajetória, aos seus moldes, é um conto de fadas com data estipulada – ela só quer aproveitar o máximo possível.

Jenkins confecciona diversos “desfechos”, entretanto, nenhum é tão pungente e revelador quanto o último. Na prisão, a protagonista liga para a amada e não demonstra pessimismo, pelo contrário. Selby começa a fazer perguntas estranhas, a conversa perde a conexão romântica que arrastou as duas até esse momento e Aileen entende a situação. Se até Selby estava armando com a polícia para capturá-la, a protagonista não tinha mais chance, nem esperança. O quadro, aos poucos, é fechado em seu rosto, criando uma rima entre a prisão e a sensação de estar encurralada na escuridão, completamente sozinha. Aileen, então, no seu último gesto de amor, se entrega, salvando Selby – a câmera é movimentada e vemos a enorme equipe por trás de tudo.

A fotografia em tons frios combina com a direção de arte, que imerge o espectador em ambientes sujos e decadentes, e com os figurinos, que se limitam, majoritariamente, a farrapos.

Charlize Theron oferece uma das performances mais impressionantes da história da sétima arte. O belo trabalho de maquiagem, responsável por desfigurar-la completamente, não toma a dianteira. Não enxergamos a atriz ali, pois sua interpretação é tão rica e empática, que a encaramos como a verdadeira Aileen. Sua inquietude corporal está ligada ao efeito que Selby tem perante ela. O beijo afobado e desajeitado do início é precisamente calculado, assim como os sorrisos e olhares em busca da normalidade, denotando insegurança e trazendo à tona todo o seu trágico passado. Os trejeitos, a forma bruta de andar e o sotaque carregado são perfeitamente trabalhados. Seu rosto merece atenção, transmite emoções contrastantes e deixa o espectador, simultaneamente, sensibilizado e apavorado. Existem muitos sentimentos presos, ela é a sonhadora e o monstro. O fechar dos olhos na cena do telefonema é o ápice da tristeza e Theron o alcança com maestria.

“Monster” é um filme duro e denso, cujos equívocos não atrapalham o brilhante estudo de personagem. 

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