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Após a morte de seu pai, um artista de renome que se suicidou, e o término de seu relacionamento, Catherine decide passar um tempo na casa de Virginia, sua melhor amiga.

“Queen Of Earth” preza pelo desconforto. O diretor Alex Ross Perry inicia o filme com um close up intrusivo do rosto borrado de maquiagem da protagonista. Não sabemos se James – o namorado – está sendo injusto com a moça que está passando por um momento difícil ou se a relação era de fato insustentável. Naturalmente dependente, Catherine se encontra no fundo do poço sem os pilares que a mantinham em contato com a realidade. Ela é talentosa, mas não chega aos pés do pai. Esse é um dos fardos que a fez caminhar para trás, assumindo o posto de sua assistente por puro nepotismo. Nos flashbacks, os tons quentes combinam com sua roupa colorida e aparência esbelta. Seus sorrisos, na verdade, advém da segurança que sente ao lado de James. Catherine nunca olhou para si, não sabia como se sentia até agora, pois nunca precisou, sempre se escorou nas vidas e reações alheias. Sem tais bengalas, a protagonista é uma figura vulnerável e deprimida, que admite seu fracasso e se entrega, gradativamente, à insanidade total.

No início pensamos que Virginia cumprirá uma função importante em sua regeneração mental, no entanto, logo percebemos que há algo muito estranho naquela amizade. Os flashbacks ressaltam a enorme inveja que Virginia tinha da amiga, exposta a partir de diálogos ríspidos, grosserias gratuitas direcionadas à James e olhares que denotam uma amargura assustadora. O uso de câmera na mão e o quadro, constantemente fechado, são eficientes ao moldarem uma atmosfera tensa e caótica, que conversa com a mente das personagens. Virginia a convidou para decretar seu fim, não para abraçá-la. Ela sabe como perturbá-la e a chave é a presença recorrente de Rich, seu vizinho. Catherine é igualmente egocêntrica e não gosta de ver sua grande amiga com outra pessoa. Em determinado momento, a protagonista entra na casa e a impressão é de que os dois estão rindo dela, ainda que distantes. A observação é constante, Virginia vigia a convidada minuciosamente, controlando suas emoções, as mantendo numa espiral descendente. Catherine não dorme, mal come e se encolhe. A falta de noção e o clima pesado do passado se multiplicam com a fotografia, agora dominada por tons frios, e pela face real e desesperançosa da protagonista. A troca de farpas é verbal, às vezes direta, todavia, incomoda mais quando é tomada por um cinismo repugnante. Estamos diante de mulheres detestáveis, igualmente problemáticas e incapazes de se sentirem genuinamente felizes. O melhor que podem fazer é ficar por cima, preenchendo as próprias existências com elementos que mascaram o irredutível desespero. Se Catherine nunca precisou provar nada, se sustentando graças à “bondade” do pai, o mesmo pode ser dito sobre Virginia, que não trabalha e vive na casa da família, isolada da cidade. Esforço não é uma palavra presente em seus dicionários, muito menos dor, por mais visível que seja aos olhos do espectador. Esse é o ponto central: diferentemente das personagens, temos noção de como seres humanos que aturam o cotidiano reagem. O corte que confunde o corpo das moças é interessante, entretanto, as fusões que conferem maior complexidade ao par são aquelas que misturam seus rostos com os das plantas, elaborando, então, um paralelo entre a natureza em si e a natureza humana. Isso também vale para os planos em que vemos uma delas em primeiro plano e a outra em segundo – as posições se alternam, assim como a personagem em foco. A inteligente narrativa evidencia um padrão comportamental, revelando, no fim, algo bem menos lisonjeiro a respeito de Virginia.

Alex Ross Perry realiza um estudo corajoso sobre a degradação da mente humana. O silêncio, o escuro, os close ups invasivos, a trilha arrepiante e o contraste estabelecido pela montagem em suas passagens temporais são marcas que divergem da abordagem contemplativa do cineasta – o ritmo é lento. Em um passeio no rio, temos uma forte sensação de claustrofobia pelo simples motivo de Catherine estar no meio da canoa, entre Virginia e Rich. A visão subjetiva, salientada, por exemplo, na festa, quando ela fica diante de vários estranhos e se sente atacada, e no jantar, reforçando sua repulsa por Rich através de planos-detalhe e do design de som, que potencializa o som de suas mordidas – um verdadeiro animal –, ratifica o interesse do diretor em dissecar aquela psique dilacerada. A salada que apodrece diariamente é um símbolo perfeito para sua condição e reafirma a rima entre a natureza idílica e o inferno.

Elisabeth Moss oferece uma das melhores performances da década passada. A diferença na tonalidade vocal, mais debilitada no decorrer da trama, a feição assustada e os olhares que denotam desconforto dão profundidade a uma personagem complexa. Seria fácil apenas detestá-la, mas Moss vai além, a tornando digna de pena. A “síndrome de Catherine” é palpável, aterradora.

Durante boa parte do filme eu me perguntei como aquelas mulheres podiam ser amigas. A resposta vem de forma enigmática e enervante. Catherine e Virginia se conheceram ainda jovens e o único motivo de continuarem essa relação é a solidão que assumiriam caso se “separassem”. As pessoas buscam consolo em braços acolhedores nos períodos de dificuldade e é isso que a protagonista, em teoria, faz. Assistimos a farsa, elas se detestam e se amam, pois, de certa maneira, são a mesma pessoa. Após dizer: “sinto que estou te vendo pela primeira vez”, Virginia fica gradualmente desconcertada. A amiga era uma espécie de espelho, o fio que a fazia se reconhecer enquanto ser humano. A insanidade quebra o espelho e corta o fio. Catherine não está mais ali, não a que Virginia estava habituada a receber, conviver, provocar e invejar. Seu autoconhecimento é tão vazio, que é preciso olhar para alguém e conferir se suas características seguem intactas. O choro e o riso, abruptamente cortados/intercalados no desfecho, ressaltam essa separação e a trajetória atordoante da protagonista. Juntas, não são ninguém, sozinhas, terão trabalho…

Katherine Waterston concebe uma personagem, simultaneamente, imatura, irritante, cínica e vulnerável. Virginia é intrigante e assustadora, aparenta estar sempre raciocinando e observando a amiga.

“Queen Of Earth” é uma experiência angustiante. Um filme que leva o termo

“toxicidade” às últimas consequências e que se propõe a discutir temas relevantes de uma forma autoral.

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