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Em 1940, na colônia francesa da Martinica, dominada pela opressora marinha, o americano Harry Morgan ganha a vida levando pessoas para pescar. Bem relacionado, o marinheiro é confiável, inteligente, cético e acomodado, um homem de caráter incorruptível.

Um cliente lhe deve oitocentos dólares e, mesmo assim, Harry rejeita a oferta dos resistentes, afinal, não se mete em política, não escolhe lados.

Eis que surge Marie, uma jovem que acabou de chegar na Martinica e já deseja abandonar o local. Charmosa e sedutora, ela rouba a carteira de marmanjos com uma facilidade constrangedora. Não interessa se o tal cliente perdeu dinheiro, o protagonista só quer uma oportunidade de se aproximar de Marie.

A química entre os dois é notável, seja pela troca de olhares, seja pelos movimentos sincronizados e, principalmente, pelas fortes e similares personalidades. Estas são pessoas que sabem perfeitamente o que responder, como retrucar e deixar o outro sem argumentos.

Por que Harry não sai de perto de Marie e a defende perante os oficiais franceses? Por que ela vai ao quarto do marinheiro, em vez de se afastar?

Somos apresentados a figuras imponentes e duras. Gradativamente, o roteiro retira as máscaras e prova que estamos diante de seres que se acostumaram com a solidão. O jeito pouco convidativo é um sintoma da falta de carinho ao longo de suas trajetórias. Em público, o comportamento muda somente em pequenos e poderosos gestos que denotam esperança; em contrapartida, quando estão sozinhos, ficam prestes a explodir, a ponto de se abraçarem e revelarem intimidades.

Harry leva o título de herói da história muito a sério e pretende se afastar de Marie, sabendo que os oficiais irão atrás dele. Me parece uma desculpa esfarrapada para não assumir um compromisso, sentimentos poderosos e uma vida menos vazia. Essa possibilidade apavora o protagonista, é uma novidade em sua banal e precária existência. Marie, por outro lado, teme apenas pela manutenção de sua condição. Melancólica e entregue ao amor, ela é, muito provavelmente, a dama Noir mais humana da história da sétima arte. Marie não quer partir sozinha, não pretende fingir que está tudo bem. Em determinada cena, ela, com o seu irresistível tom de voz, se oferece a realizar uma série de favores a Harry, numa clara manifestação de afeto e desespero.

O amor transforma seres humanos ríspidos em “idiotas do bem” e é mais ou menos isso que acompanhamos em “To Have And Have Not”.

O protagonista talvez não consiga dizer o que sente, mas seus atos são nítidos, e não partem de um homem político que decide ajudar os resistentes por ideais ou dinheiro. Rico e incrivelmente bem construído, o arco de Harry enxerga na paixão uma força capaz de tirar um sujeito de uma zona de conforto em que literalmente nada o comove ou o faz sair do barco. Marie mexe com sua visão em relação a tudo – é como se o romance mudasse a natureza das pessoas – e o protagonista, então, opta somente pelo certo. O pragmatismo é uma doença e Hawks, ao lado de seus roteiristas, sempre tratou de remediá-lo.

Harry busca o membro perdido da resistência, o salva de um mal pior e cura seu grave ferimento. Como ele mesmo afirma, aquela briga não é sua, no entanto, passa a ser, não por se importar com a França, mas por perceber o que acontece e discernir o certo do errado.

No fim, é o protagonista quem organiza o plano “rebelde” e leva os nativos até a “ilha do diabo” para libertar o líder dos resistentes. Claro, Harry também assume suas dores e a possibilidade de abandonar o que sempre foi tolerável, fugindo com Marie para algum lugar distante.

Eddie, o amigo bêbado do protagonista, é o ponto crucial para entendermos que ele nunca foi desumano. Seu cuidado e carinho, ainda que “grosseiros”, são responsáveis por manter Eddie vivo e minimamente integrado.

Apesar de discordar, eu não julgo quem disser que o estilo de “To Have And Have Not” é maior do que a substância. A fotografia em preto e branco é deslumbrante, servindo também como um elemento Noir.

A escuridão nos quartos dos personagens ressalta o vazio e a solidão que assolam suas existências, além de conversarem com a natureza misteriosa de ambos.

A neblina que cobre o céu na sequência do resgate reforça o perigo que eles correm. Tudo tem uma função dupla – de entregar algo à narrativa e estilizar o filme, isso é inegável.

O salão principal, no qual a maior parte da obra se desenvolve é charmoso em cada detalhe, desde o piano ao bar, sendo o palco perfeito para troca de olhares incisivos e um desfecho otimista e elegante. O porão onde os resistentes se escondem e o homem ferido descansa é sujo, pequeno e decadente. A direção de arte merece elogios por conceber espaços tão distintos e próximos.

Howard Hawks tem um domínio raro sobre a mise en scéne. Após a primeira cena de ação – muito bem conduzida por sinal -, o general francês se coloca no centro do quadro, deixando claro quem manda naquele lugar. A repressão está ali, silenciosa e eficiente. Harry e Marie se movimentam pelos cenários com intuitos pré-estabelecidos. A forma como adentram os quartos alheios diz muito sobre o que estão sentindo, assim como a distância/proximidade que mantêm. Ao falar sobre sua triste trajetória, Marie fica de costas pela insegurança, por estar se abrindo, não por estar ao lado de Harry.

Irônicos, sarcásticos, inteligentes, fortes, solitários e apaixonados – estes são Humphrey Bogart e Lauren Bacall, cujos personagens optam pela felicidade e pela dignidade. Não é exagero algum dizer que o filme funciona graças a encantadora e divertida dinâmica entre os dois.

Bogart era um dos poucos atores com a capacidade de humanizar figuras assim. Ele se diverte enquanto atua, seu protagonista é crível e empático.

A princípio, marrenta, a estreante Lauren Bacall conquista o espectador com sua fragilidade. Sua beleza e seu canto são realmente diferentes – e aquela cena em que ela aparece de vestido preto é marcante.

“To Have And Have Not” é uma obra prima tão romântica, que um ano após seu lançamento, Humphrey Bogart e Lauren Bacall se casaram.

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