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Após quatro incessantes anos trabalhando na reconstrução de um brontossauro, o paleontólogo David Huxley está prestes a terminar seu projeto. O osso restante foi encontrado e o Museu de História Natural receberia uma doação de um milhão de dólares. David irá se casar com sua colega, ou seja, sua vida não poderia ser melhor. Será?

Ao falar sobre o matrimônio, sua noiva afirma: “vejo o nosso casamento como uma dedicação ao seu trabalho”.

A enorme sala, o dinossauro impecavelmente estruturado e a rigidez da parceira transformaram o protagonista num sujeito pragmático e que se leva demasiadamente a sério. Ele queria desfrutar de uma prazerosa lua de mel e ter filhos, no entanto, sua existência parece destinada a outras prioridades.

Eis que, em uma reunião de negócios num campo de golfe com o advogado da tal doadora, Mr. Peabody, David se depara com Susan Vance que, desde o princípio, o enlouquece.

Ela usa sua bola, rouba e amassa o seu carro e, sem intenção, apenas por ser desastrada e impulsiva, o obriga a causar uma péssima impressão perante o advogado. David precisa compensar Peabody de alguma forma e consegue marcar um jantar, todavia, Susan aparece em seu caminho novamente. Ela o derruba, rasga seu fraque e, dessa forma, se aproxima daquele que julga ser o amor de sua vida. O único dever do paleontólogo era conversar e reforçar seu interesse pelo investimento no Museu, e, repentinamente, se vê na janela do quarto do advogado, atirando pedras em sua cabeça.

“Bringing Up Baby” é uma “screwball comedy” – subgênero popularizado nas décadas de trinta e quarenta -, muito provavelmente a comédia mais insana e surpreendente já feita. Quando o espectador acha que viu de tudo, algo mais maluco acontece, contribuindo para o tom cômico e para o desenvolvimento da relação entre os personagens.

Susan é sobrinha da milionária disposta a doar um milhão de dólares ao museu, o que obriga David a aceitar os improvisos e delírios de sua fortuita “amiga”. Todas as ações de Susan visam a aproximação com seu amado. Baby, o leopardo presente no título, é o nó que une opostos e que eleva a comicidade a um nível jamais visto.

Seu irmão passou um tempo no Brasil e enviou um leopardo domesticado para a tia, e é claro que Susan usa isso para prender David. O filme é uma aula de cinema em diversos aspectos. O ritmo é impecável, a ação é ininterrupta e, em vez de pausas e respiros, a trama caminha exponencialmente à loucura, combinando impecavelmente elementos de humor, romance e drama. As situações estabelecidas pelo roteiro e brilhantemente conduzidas por Hawks são de uma inventividade ímpar e, como mencionei, estão sempre um passo à frente do espectador.

O mesmo pode ser dito em relação aos personagens, contagiados pela gradativa insanidade. O terno impecavelmente arrumado e os óculos formam a persona sisuda de David, cujo vício pelo trabalho o transformou numa figura de pouco senso de humor, ansiosa e nervosa. Em contrapartida, Susan é vivaz, meiga e inconsequente. Ela quer conquistar sua paixão e ele quer consertar as coisas e voltar a tempo para se casar.

Era tudo muito simples, mas David acaba numa casa em Connecticut vigiando um cachorro que roubou seu valioso osso, correndo atrás de um leopardo foragido, assumindo o sobrenome “Bone” para não atrapalhar sua imagem perante a tia de Susan e fingindo ser um caçador de animais.

A cena do roupão é um tesouro da sétima arte, um show à parte de Cary Grant.

Applegate, amigo da dona da casa, é um exemplo perfeito de como um roteiro pode ser “infeccioso”. Sua classe e bons costumes são rapidamente subvertidos quando se depara com a indescritível situação, se tornando um homem tão perturbado e assustado quanto os demais.

Para piorar, outro leopardo, nada amigável, entra em cena e desorienta os personagens, que acabam na prisão, confundidos por uma perigosa gangue. O termo mal-entendido nunca foi tão bem representado e a sequência no presídio é a prova de que comédias não têm limites – as boas, obviamente.

Se a trama soa comicamente instigante e insana, se preparem para algo ainda maior, que quebra paradigmas e regras. O que me fascina em “Bringing Up Baby”, além da qualidade do texto e dos intérpretes, é o arco dramático. David sai da gaiola das convenções e da rigidez e parte para o extremo oposto, preso a loucura em seu estado puro.

Por mais que demonstre impaciência e irritação, o protagonista, no fim, se vê completamente mudado, um novo homem. Aquele foi o melhor dia de sua vida, era o tipo de diversão que precisava para notar que não era o sujeito que sua noiva insistia. Duas gaiolas, David encontra a chave para uma e escolhe Susan, escolhe ser feliz. Por outro lado, esta pode ser vista como a tentativa bem-sucedida mais mirabolante e doida de investir no amor verdadeiro.

Hawks conduz subsequentes sequências extraordinárias e marcantes, entretanto, tinha noção de que o show era da dupla central, por acaso, formada pelos meus intérpretes favoritos: Cary Grant e Katherine Hepburn. A química entre os dois é impressionante desde a primeira cena –  o contraste de personalidade é charmoso e comicamente relevante.

A screwball comedy demanda uma série de qualidades difíceis de se alcançar sem defeitos. A rapidez na fala, a entonação que muda a conotação de uma frase comum, os trejeitos pouco naturalistas e a contagiante loucura, que se mistura com carisma e talento. Grant e Hepburn eram mestres e tiram de letra cada movimento e fala, deixando o espectador em êxtase.

O arco de Grant é mais notável, sua transformação é brilhantemente construída – seriedade, desconcertado, preocupação, insanidade, ceticismo e aceitação. Em todas as fases, Grant progride cômica e dramaticamente, compondo um personagem, simultaneamente, irreal e relacionável. Hepburn, por sua vez, é a faísca à beira de explodir que, inevitavelmente, incendeia a história. Sua risada é incomparável e o seu jeito peculiar, algo entre o ingênuo e a esperteza, acentua sua graciosidade.

A última cena é genial, especial em vários sentidos e o plano geral utilizado por Hawks para mostrar o dinossauro desmantelado simboliza a mudança radical na vida do protagonista – a destruição como salvação.

“Bringing Up Baby” é uma obra prima, possivelmente a melhor comédia já realizada.

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