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Um grupo de intelectuais está há quatro anos escrevendo uma enciclopédia. Eles caminham ao ar livre divagando sobre diversos temas e é Bertram Potts, o mais novo, quem dá as ordens e impressiona pela sisudez. Oito solteirões convictos em uma enorme casa que se mistura com a livraria, onde trabalham. Espiritualmente velho, o protagonista tem idade para ser filho de seus colegas e não consegue desviar a atenção do trabalho nem por um segundo, o que ressalta um certo vazio emocional.

Após ser bombardeado por novas gírias, Potts percebe sua obsolescência e decide fazer uma “pesquisa de campo”, anotando tudo que desconhece, descobrindo o significado de tais expressões. Em um restaurante, Sugarpuss O’Shea se apresenta e é abordada pelo professor, que deseja fazer um seminário com aqueles que podem lhe ajudar. Ela o dispensa, no entanto, graças a Joe, seu pouco confiável namorado, a polícia está em sua cola. Sem ideias, a dançarina decide se esconder com os intelectuais, que desconhecem sua história.

O estilo antiquado, formal e rígido dos professores é magistralmente apresentado por Billy Wilder – responsável pelo roteiro. Quando a empregada é mais ríspida, o protagonista só se importa com um erro gramatical: “deveria usar o infinitivo”. “O que é bufunfa?”, pergunta o mesmo. Eles chegam a brincar entre si, mas vivem em uma redoma na qual alguns diplomas são necessários para se entender uma “simples” piada. O choque é imediato. Sugarpuss surge com seu jeito sensual e vulgar e apavora os senhores, que reagem como jovens passando pela puberdade. O único que se opõe a estadia da dançarina é Potts, que enxerga nela uma enorme distração e uma infração aos códigos previamente estabelecidos pelo conselho. A verdade é que todos se animam com o “fato novo” e, ainda que não admitam, estavam desesperados por algo que os chacoalhassem, que tirasse seus olhos de livros e os lembrasse o que é ser um humano feliz.

A beleza de Sugarpuss é inegável, mas é a leveza que ela traz ao mórbido escritório que a transforma num pote de ouro. Não à toa, assim que acorda, é recepcionada por seus sete admiradores, dispostos a lhe ajudar ou tirar qualquer dúvida. Figuras cansadas e murchas, repentinamente, brilham como a saia de Sugrapuss. Em determinado momento, eles tentam repetir os seus passos de dança, se baseando em cálculos matemáticos, quando, na verdade, é essa métrica que impede qualquer movimento minimamente fluido. Ela aparece e desfila, sem preocupações ou métodos elaborados e os senhores a acompanham, numa das melhores cenas do filme. Enquanto isso, Sugarpuss mantém contato com os capangas do namorado, que pede sua mão em casamento, não por amor, mas porque sabe que a esposa não é obrigada a depor contra o marido.

Além da empregada, que detesta a ideia de “dividir” o ambiente com outra mulher, o único que é contra a permanência da dançarina, apesar de admitir sua importância para a enciclopédia, é Potts. Ele decide expulsá-la, todavia, Sugarpuss, sabendo da ronda constante dos policiais, o seduz e o beija. O protagonista, que em nenhum momento esconde sua atração pela moça, é pego desprevenido e assume um compromisso. Corações empoeirados são facilmente conquistados e Potts, pela primeira vez em sua vida, se via diante de algo que não dependia de bases teóricas e estudos profundos. A enciclopédia fica em segundo plano, ele se sentia um bobo, um idiota feliz, o que era ótimo, e não demora para pedir sua mão em casamento.

Billy Wilder demonstra um profundo entendimento sobre a natureza humana, expondo a diferença entre frieza e emoção.

“Minha vida foi um prefácio vazio”, diz o professor, que se redescobre enquanto homem, percebendo que certos sentimentos não são intrusivos, pelo contrário, agregam. Sugarpuss se encontra numa situação tempestuosa, tem noção de seu efeito sobre Potts e se encanta por sua sensível sinceridade, porém ainda está ligada ao namorado e ao seu plano egoísta. Ambos são ingênuos, Sugarpuss por aceitar o pedido acreditando em algum afeto e Potts por não perceber o óbvio.

O gradativo ânimo do protagonista, que acelera os preparativos para a cerimônia, coloca a dançarina numa situação dura e delicada. Ela é desmontada, se sente suja e culpada, entretanto, antes do esperado final, Sugarpuss toma atitudes bastante reveladores em relação a sua índole e existência marginal. Sua dualidade moral é um outro acerto do roteiro – o rosto coberto a caminho do casamento representa, simultaneamente, sua vergonha e o medo de se deparar com um policial.

Wilder constrói personagens opostos e equivalentes. Potts é um prodígio, não precisa da confirmação alheia para saber que é brilhante; Sugarpuss se considera demasiadamente inteligente, não em termos acadêmicos, mas por conhecer a realidade, as ruas e as pessoas. Os dois percorrem arcos extensos, são enganados, se decepcionam e reagem. Uma união improvável e perfeitamente estabelecida.

Os senhores ficam mais orgulhosos com o título de padrinhos de casamento, do que com o de intelectuais. Essa felicidade fabulesca vai por água abaixo quando Joe e seus capangas aparecem e destroem o conto de fadas. “Ball Of Fire” é vagamente inspirado no clássico “Branca de Neve e os Sete Anões”. Os colegas de Potts dividem características consideráveis com os anões.

Na direção, Howard Hawks demonstra a habitual facilidade para se adaptar a diferentes gêneros, pelas delicadas pistas que deixa e pela sensível abordagem. O plano-conjunto no qual Potts e Sugarpuss são ofuscados pelas pernas da moça, que tomam conta do quadro, talvez seja a imagem mais marcante do filme, entretanto, está longe de representar o ápice do cineasta.

A começar pela posição dos personagens na tela. No início, o protagonista fica quase sempre no centro e a sua alta estatura é destacada por Hawks. O artifício é repetido quando Sugarpuss domina a casa e hipnotiza os intelectuais com sua beleza distinta.

Os planos-detalhe salientam o que está escondido, dão ao espectador uma visão ampla da obra – a foto da dançarina no jornal, por exemplo.

Por que Hawks foca no número nove do chalé de Sugarpuss, que vira e se transforma em um seis? É uma maneira sutil de informar que algo acontecerá naquele lugar. O protagonista entra no quarto escuro para se abrir para um amigo, sem fazer ideia de que estava se declarando para sua noiva.

Há uma longa sequência em que os intelectuais são encurralados por dois capangas no próprio escritório e eles dependem de uma série de sutilezas para conseguir desarmá-los e fugir. A partir de uma panorâmica, percebemos que o quadro, preso por uma corda, pode desabar na cabeça de um deles. Planos-detalhe, mudanças de perspectiva, conversas distrativas e cortes precisos conferem uma considerável tensão ao momento. Os close ups estão ligados a emoções profundas, presentes em cenas em que os rostos merecem um destaque maior. Sugarpuss até conhecia o mundo e seus truques, todavia, não fazia ideia de que era possível se afeiçoar por características tão simples e “banais”.

O final é maravilhoso, reúne tudo o que a antiga Hollywood tinha de melhor. A gangue dos intelectuais é sensacional, mas é quando Potts deixa o livro de lado e luta visceralmente com Joe que a vitória é decretada.

Os “sete anões” estão impecáveis, as interações entre eles são engraçadíssimas e cobrem o filme com um inesperado calor humano.

Barbara Stanwyck e Gary Cooper estão magníficos em papéis feitos sob medida e nutrem uma forte química. Ela dava vida a mulheres sedutoras, sexys e sensíveis como ninguém e ele, ao lado de James Stewart, basicamente moldou a figura do “bom moço” americano, irresistivelmente ingênuo e puro. Talentosos, os intérpretes conhecem essas personas a ponto de torná-las interessantes e complexas.

Billy Wilder e Howard Hawks juntos. Este é “Ball Of Fire”, um dos melhores filmes da década de quarenta.

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