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Na Colômbia, Bonnie Lee se depara com uma força aérea que realiza missões, entregas e resgates. Os aviadores americanos logo chamam a atenção da moça, que se sentia isolada na selvagem América do Sul.

O início é rico o suficiente para entendermos que “Only Angels Have Wings” é um filme de diferentes camadas e sabores. Os dois simpáticos rapazes a convidam para um bar e tiram à sorte sobre quem a levará para jantar. Repentinamente, o chefe da companhia, Geoff Carter, surge e acaba com a brincadeira, informando que um deles terá que encarar uma forte neblina. A insistência de Joe em seguir adiante acarreta a sua morte.

Seus colegas lamentam, principalmente por ele ter descumprido ordens, porém, após alguns minutos, se reúnem no bar e festejam como se nada tivesse acontecido. Bonnie não compreende o comportamento daqueles sujeitos, se vê diante de monstros, quando, na verdade, está cercada por homens que dependem da adrenalina para sobreviverem e que se acostumaram com o luto a ponto de ignorá-lo. Não pensar na morte de Joe, no fundo, é uma homenagem a ele, que certamente não gostaria de ser lembrado como o “pobre coitado”. Funerais deturpam a imagem de alguém forte e jovial, e seus amigos sabem perfeitamente disso.

Geoff é um líder firme, incorruptível e corajoso. Acorrentado ao seu nobre e perigoso ofício, o protagonista não é tão simples quanto parece. Ele já se envolveu e se apaixonou, sofreu, não por ter sido abandonado, mas por ter sido obrigado a escolher entre ela e a aviação. Geoff não faz planos para as próximas horas, vive o agora, o que denota uma infelicidade velada.

Sua única certeza é de que sua vida está diariamente em risco e que sempre que consegue pousar, encontrará seus colegas, a única família que formou ao longo dos anos. O clima de camaradagem é contagiante, nos tornamos amigos dos inimigos da cautela e ficamos na ponta da cadeira nas sequências de ação. Sua rispidez é um sintoma do vazio escondido em seu peito. Geoff quer e precisa de alguém, no entanto, sabe que ninguém ficará acima de seu maior prazer. Ele afirma que nunca pediu nada a uma mulher e que jamais abandonará seu “irresponsável” estilo de vida. Bonnie se apaixona pelo protagonista e tenta, a todo instante, resgatar sua humanidade. Geoff diz que pode lhe mostrar fotos de suas conquistas, mas ela quer ver sua infância. A cada acidente e operação de alto risco, Bonnie fecha os olhos e pensa em algo que talvez possa mudar a mente de seu amor. Por mais doce, encantadora e empática que seja, ela é incapaz de enxergar o erro que está cometendo. Mudar a natureza de Geoff significa matá-lo. Personalidades e estilos de vida podem ser adaptados, nunca transformados. Estar perto dos amigos, voando sobre nuvens tempestuosas era a sua única forma de enxergar um sentido para a própria existência. O protagonista não é desumano, só habita um ambiente que lhe obrigou a lidar com situações trágicas. Seu cuidado ao “aposentar” Kid – melhor amigo – e ao integrar lentamente MacPherson, responsável por um ato cruel e egoísta no passado, ao grupo é elogiável. Judy, sua antiga paixão, está casada com seu novo colega e, em vez de expor sua covardia a fim de reconquistá-la, ele o acolhe e ajuda na reaproximação do casal. Geoff gosta de Judy, mas ela o fez escolher e isso é “imperdoável”.

Não podemos chamá-lo de egocêntrico ou insensível, sua honestidade talvez provoque sua solidão, mas nenhuma mulher é enganada e podem ter certeza de que a “afortunada” que aceitar os seus termos será tratada com carinho, respeito e amor. Ela dificilmente será tão especial quanto a adrenalina e o motor do avião, todavia, Geoff não é o tipo do sujeito que se compromete por obrigação. Se ele pede a Bonnie para ficar, é porque a ama e precisa dela e eu não tenho dúvidas de que com o tempo, seu coração ficará igualmente dividido.

Essa é a grande virada de chave. O arco de Bonnie é poderoso, impõe a moça uma aceitação que transcende muitos de seus valores. Ela percebe que se entrar naquele navio e sumir, passará o resto da vida se perguntando se aquele romance teria dado certo. O roteiro não é bobinho nem óbvio, leva a personagem a um duro e difícil processo de análise. A mensagem deixada por Hawks é belíssima: não tente mudar o que não está sob o seu controle, admita a felicidade do outro, se arrisque e seja feliz. Vagamos isoladamente por boa parte de nossa existência e desperdiçar uma oportunidade dessas não parece a melhor escolha. A última cena define lindamente a obra. Geoff a quer e voa; ela não o reprime e espera sem saber se o verá novamente.

Como o próprio título anuncia, somente os anjos têm asas. No céu, tudo pode acontecer e as perdas não são poucas, sendo a mais emocional, sem dúvida alguma, a de Kid. Ele era o grande parceiro de Geoff e as lágrimas que escorrem de seus olhos ressaltam esse profundo laço e uma tristeza que provavelmente havia se esquecido. O roteiro constrói uma excepcional sub-trama entre Kid e MacPherson, cujo passado tumultuado estava fresco em suas mentes. A última e fatal missão amarra e fecha essa relação com muita delicadeza. A cena é forte, a imagem do avião em chamas impacta, mas é a redenção de MacPherson que realmente engrandece o momento.

Howard Hawks varia brilhantemente entre uma abordagem intimista, valorizando a solidão do protagonista e seus momentos alegres – principalmente os com Bonnie – e um espetáculo visual, brindando o espectador com sequências eletrizantes e planos gerais espetaculares. Os efeitos especiais envelheceram excepcionalmente bem. O primeiro acidente é apoteótico e o uso de miniaturas é preciso, nunca distrai o espectador.

As cenas de ação possuem uma dinâmica muito interessante. Vemos o aviador e seus desafios e os colegas aguardando ansiosamente, o que potencializa a tensão. Os planos-detalhe na épica missão final são um prenúncio de que algo poderoso irá acontecer. Voltando ao intimismo, gosto como Hawks enche o bar de pessoas e fecha o quadro, salientando a amizade e o clima agradável. Da mesma forma, o cineasta merece reconhecimento pela forma que posiciona Geoff e Kid na cena em que o líder aposenta o amigo, que não consegue enxergar direito – o vazio e a tristeza estão simbolizados no vácuo presente na sala.

A princípio, forte e mandona, Bonnie se mostra uma figura sensível e doce. Jean Arthur oferece uma excelente performance, se transformando na medida em que se envolve mais com o estilo de vida extremo dos aviadores.

Cary Grant destila todo o seu charme, carisma e talento para a comicidade, adicionando também elementos dramáticos que conferem complexidade ao seu personagem e o tornam, de certa forma, enigmático. Seus princípios, firmeza e retórica contundente são inconfundíveis, muito bem construídos.

Assim como os atores principais, o roteiro caminha em diferentes tons, alcançando a proeza de ser engraçado, tenso, romântico, humano e revigorante.

“Only Angels Have Wings” é uma obra prima a ser redescoberta.

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