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Qual é o limite da inocência humana? Essa talvez seja a principal pergunta suscitada por Aki Kaurismäki em “The Match Factory Girl”, um filme que afunda sua protagonista num mar de humilhações e numa depressão tão profunda, que deixamos de lado certas questões morais. Idealizar em um mundo soturno e insensível é louvável até que ponto?

O cineasta opta pelo silêncio. As máquinas falam mais alto que os personagens e trabalham mais do que os operários, meros objetos, presentes apenas para apertar botões e observar o complexo funcionamento industrial. Os ângulos baixos ressaltam a baixa relevância de Iris, assim como os close ups, que apresentam um rosto vazio e cansado.

O processo é impessoal, não há ninguém ao seu lado, nem uma colega, muito menos o patrão, que sequer aparece.

A protagonista mantém um rígido e indesejado cotidiano sem reclamações, aceitando o que lhe foi imposto. Iris demora treze minutos para abrir a boca: “uma cerveja”. Sozinha, ela se senta e degusta a bebida no tempo livre, que, no fim das contas, reserva os momentos mais duros do filme. Podemos considerá-la uma sonhadora, é o tipo de pessoa que sorri ao ler um livro, compra um vestido visualizando a ocasião perfeita e imagina algo além do banal. “Isso é absolutamente normal”, afirmará a pessoa que não viu o filme, todavia, nos universos concebidos por Kaurismäki, a simplicidade representa o apogeu de uma existência inteira.

Iris vai a um baile, se senta ao lado de outras moças e é a única a não ser convidada por um rapaz para dançar. “Sou uma prisioneira destas terras” – as músicas não são meros artifícios estilísticos.

Ela vive com seus pais, figuras egoístas, incapazes de demonstrar um mínimo de empatia e de agradecer à filha, que paga o aluguel. A casa é pequena, conversa com a claustrofobia e a desesperança que ditam o ritmo da protagonista. Em vez de elogiar o novo vestido, o pai a chama de vagabunda – sua primeira palavra no filme. Em uma boate, Iris, discretamente, observa e aguarda por um cavalheiro. A troca de olhares é um sinal, quem sabe um ar de esperança. A tão esperada dança acontece e seu rosto denota uma felicidade genuína, potencializada pela canção romântica – um mundo fantasioso.

Aarne vai para o trabalho, a deixa dormindo e coloca um cheque ao lado da cama, o que diz muito sobre o seu caráter e intenções.

No trabalho, Iris é um acessório descartável que sabe de cor o trajeto que fará nos dias de semana. Sem amigas, a moça espera por um príncipe inexistente na fria e cinzenta Helsinki. Ela é ignorada ou usada para prazeres estritamente carnais. O ensopado, servido no jantar, é um dos símbolos que caracterizam a insuportável vida de Iris.

Kaurismäki adota uma abordagem impessoal, se valendo de planos-detalhe e ângulos baixos para não criar a impressão de que aqueles personagens se relacionam. Quando a protagonista entrega o dinheiro para sua mãe, por exemplo, vemos somente as mãos das duas e a nota.

Após muito esforço, Iris consegue marcar um encontro com Aarne, que reafirma a sua imensa insensibilidade e desprezível personalidade: “Se acha que há algo entre nós, está muito equivocada. Nada me emociona tão pouco quanto o teu amor”.

Presa a uma existência pragmática e desoladora, a protagonista, que já impressionava pela melancolia na primeira cena, gradativamente, se apaga, se encontra em um beco cada vez mais fúnebre.

Seu irmão é o único ponto de afeto, entretanto, parece ter sido engolido pelo ceticismo nórdico.

O roteiro é especialmente cruel com Iris e o diretor, com seu bom gosto habitual, adiciona pitadas de um humor seco e peculiar. A inesperada gravidez surge como o último grito de esperança. Kaurismäki, que costuma dar algum tipo de respiro aos seus personagens, nunca foi tão pessimista e incisivo. “Livre-se do fedelho” e “Esperamos que encontre uma outra casa”. Não vemos o rosto do pai – são respostas ríspidas, que nos fazem querer invadir a tela e abraçar a pobre coitada.

Os breves sorrisos, as idealizações românticas e a pureza angelical desaparecem, sugados pelo buraco negro em que habita. A roupa preta simboliza o apodrecimento de seu coração. Iris, que lutava contra uma irremediável depressão, não apenas aceita a condição, como também se transforma.

Respondemos ao que recebemos, deve haver uma reciprocidade e quando o meio já é pouco receptivo, não esperem por uma eterna boa vontade. A solidão extrema leva a retenção de sentimentos poderosos, tornando a explosão avassaladora. A psicopatia da protagonista é um sintoma da mecanização de sua existência, baseada na banalidade operária e no sofrimento diário.

Nesse sentido, a interpretação de Kati Outinen merece inúmeros elogios. A atriz faz muito com pouco, demonstra emoções sutis e dilacerantes com o olhar e significativas mudanças na expressão facial. Sua voz é “inaudível”, seu rosto é a pérola de “The Match Factory Girl”.

A passividade, a minuciosa preparação e o prazer pelo assassinato são assustadores, críveis graças a fantástica composição de Outinen.

A cidade fantasmagórica é o palco ideal para tamanho arco e a direção de arte faz questão de tornar os espaços ainda mais decadentes. Sem falar nos detalhes fantásticos, como, por exemplo, a poltrona vermelha na qual Iris se senta depois de envenenar os pais – morte, ódio e vingança. O verde assume a conotação de dor, já que está presente na fábrica e em seu quarto. A própria natureza ganha um novo significado na sequência em que ela se senta para ler um livro. As plantas têm a cor de sua transformação, o que suportou durante muito tempo.

Kaurismäki não mostra as mortes, sua abordagem vai na contramão de qualquer exposição. A força de seu trabalho está nas cenas silenciosas, nas falsas interações, na força inigualável da performance central e no vazio que separa cada cena – a montagem é extremamente seca e não poderia ser diferente.

“The Match Factory Girl é uma obra magnífica. A Finlândia nunca foi tão obscura e aterradora.

“Agora meus olhos só veem a terra fria e cruel”

“Quando tudo se dá e só se recebe decepção”

“Agora já não brilha a flor do meu amor”

“Teu olhar frio e gélido sorriso a mataram”

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