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Dono de um senso de humor incomparável e de uma enorme sensibilidade, Aki Kaurismäki vai se tornando rapidamente um dos meus cineastas favoritos. Em “Leningrad Cowboys Go America”, ele realiza vários estudos a partir de uma narrativa inventiva.
O filme começa com uma panorâmica na qual somos introduzidos a um extenso e vazio ambiente. Os protagonistas se apresentam em um celeiro para um possível interessado, que detesta a música e avisa ao empresário deles que a única possibilidade de sucesso é nos Estados Unidos, onde “tudo é comprado”.

Os “Leningrad Cowboys” são os representantes máximos da “terra de ninguém”; vivem na tundra isolada do mundo, guardam o corpo congelado de um antigo integrante, usam sapatos inacreditavelmente longos e topetes que deixariam Elvis Presley com inveja. Eles não têm carros, dirigem mini tratores e precisam atravessar uma floresta para chegar a um inóspito aeroporto. Os protagonistas decolam rumo ao sucesso, com seus instrumentos e o tal corpo congelado no bagageiro.
Nova Iorque é grandiosa, repleta de luzes, prédios e vida urbana – o plano geral serve perfeitamente de contraponto à gélida tundra.

A banda vai ao icônico bar CBGB e é recebida por um sujeito que diz ter grandes coisas em mente para eles: “Madison Square Garden ou Yankee Stadium”. O empresário se anima, mas fica relutante ao descobrir que os Cowboys serão testados antes dos shows serem marcados. De grandes arenas a um casamento no México, esse é o poder que a música polca tem sobre quem a escuta.

Diferentemente de seus outros filmes, este é objetivamente uma comédia, repleta de camadas nas entrelinhas. Antes de viajarem, eles são avisados de que só se fala inglês nos Estados Unidos e que somente bandas locais são levadas a sério. Dessa forma, Kaurismäki afirma que os americanos se sentem donos do mundo e que são preconceituosos. Algo semelhante acontece após o representante do CBGB “aconselhá-los” a tocar Rock and Roll. Os músicos são artistas, logo, possuem uma essência que os torna autorais e únicos. A indústria musical, mais do que qualquer outra, adere a tendências e tampa os ouvidos para o que está fora da bolha. Os Cowboys são, gradativamente, tolhidos. O cineasta não direciona o olhar do espectador para os seus questionamentos. Eles estão lá, sutilmente inseridos em uma trama ágil e comicamente infalível.

Kaurismäki é um diretor espirituoso; enquanto coloca o dedo em certas feridas, confecciona cenas engraçadíssimas. O simples fato deles carregarem um corpo para todo o canto é suficiente para provocar risadas genuínas.

“Você sempre é assassinado quando vai a Nova Iorque. Eu vi na televisão”, afirma um dos Cowboys com a entonação peculiar aos personagens “kaurismakianos”.

Outro elemento surpreendentemente cômico é a facilidade com que os músicos aprendem o inglês e os novos estilos musicais – os autodidatas mais simpáticos do cinema. Assim como as criações anteriores de Kaurismäki, os protagonistas são autênticos nórdicos: expressões faciais imutáveis, uma melancolia congelante e uma felicidade humanamente peculiar.

O filme é assumidamente um “road movie”, no qual o meio de transporte não suporta todos os integrantes, obrigados a sentarem em poltronas no guarda-malas – além, claro, do corpo congelado, que serve também como cooler, no capô. Há um plano-detalhe de um belo pedaço de carne bastante revelador em relação à personalidade do empresário, que está ali para se dar bem, não para fazer parte do grupo. Se o Rock é a tendência, que eles se virem. Ingênuos, os Cowboys estão quase sempre com fome, deixando o empresário tomar à frente dos negócios. Quando param em um supermercado, ele compra um pacote de cebolas cruas para os músicos se deliciarem. Figuras desse tipo não são uma novidade no meio musical e a presença silenciosa e atenta do empresário engrandece o painel de Kaurismäki.

Despojado, o filme se vale de rápidos sub-títulos que surgem na tela. A revolução é a percepção de que estão sendo enganados. Os protagonistas decidem amarrar o “patrão” oportunista; em contrapartida, ao ser solto, a palavra “democracia” aparece. Ironicamente, o cineasta critica os sistemas e os meios de se chegar ao poder – mentira e ganância. O empresário fica na frente, em primeiro plano, com um aspecto de superioridade, e os demais se agrupam no fundo.

A jornada até o México é longa, repleta de situações marcantes que exploram as diversas paisagens americanas. Em New Orleans, somos presenteados com um dos grandes momentos da obra, aquele em que a banda se apresenta e o animado público dança euforicamente. A música tem a força de unir etnias e culturas opostas, é uma das belezas que a arte proporciona, transformando o mundo num lugar consideravelmente mais especial e harmonioso.

Os Cowboys passam por lugares nos quais são enxotados, deixam de lado a rica cultura soviética e tentam imitar astros ocidentais. Se fechar para novos estilos não é a resposta, acredito, inclusive, que a evolução do artista passa pela mistura de estilos. Em Del Rio, no Texas, eles compreendem quem são, sem preconceito nem vergonha. O som eclético conversa com a letra da música: “estávamos em busca da luz”, que ganha um significado ainda maior com a imagem da longa estrada – o horizonte.
A polícia, obviamente, marca sua presença, esbanjando autoritarismo. Presos, os músicos se inquietam, o que é ressaltado através de cortes, da inserção de títulos – os dias se passando – e do crescente estrondo na mesa.

O sonho americano já foi explorado diversas vezes no cinema, por diferentes artistas. Kaurismäki foge do glamour, coloca seus heróis nos ambientes mais frios, decadentes e inóspitos possíveis – as fábricas contrastam com a natureza, não deveriam estar ali. No fundo, é tudo uma grande ilusão, o sonho é para os sonhadores e a realidade para os pragmáticos ou corrompidos. Não criamos expectativas, achando que os Cowboys de Leningrado se tornarão astros internacionais, o que interessa é a jornada. Nesse sentido, Kaurismäki não poderia terminar o seu filme de maneira melhor. Eles fogem dos Estados Unidos e chegam no México. A trajetória escancara a compaixão e a amizade de figuras quietas, finalmente felizes. Não à toa, o último show é justamente em um casamento, cerimônia que simboliza a união. O empresário… bem, ele não faz parte do grupo.

Entre as sequências mais cômicas, destacaria aquela em que os músicos, por acaso, encontram um primo.
 -Sabe tocar algum instrumento?
-Não.
-Sabe dirigir?
-Não.
-Então será o vocalista.

A palidez nórdica se confunde com falta de saúde, logo, os protagonistas decidem se bronzear. Em uma das imagens mais icônicas do filme, eles se deitam de cueca na praia, cuidadosamente alinhados.
Há um plano belíssimo, no qual os Cowboys observam um vasto campo e o trabalho rural. Pela primeira vez, se enxergam naquele espaço, existe uma familiaridade ali.

Falando em pertencimento, a saga do personagem mudo, negado pelo grupo por ter um cabelo curto, é, simultaneamente, cômica e melancólica. O peixe é um símbolo de carinho e os protagonistas captam a mensagem.

“Leningrad Cowboys Go America” é um dos filmes mais peculiares, cool, originais e fascinantes que já assisti.

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