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Logo na primeira cena, Michael Mann diferencia “Thief” da maioria dos “Neo-Noir/Heist Movies”. Sua preocupação em apresentar os preparativos e a engenhosidade dos “profissionais” que assaltam joalherias é única. A trilha sonora eletrônica e ágil, combinada com planos-detalhe da furadeira penetrando o cofre, além de conferirem tensão ao momento, dão um aspecto quase artístico ao feito daqueles homens. A sequência é longuíssima e há outras ainda mais elaboradas no decorrer da trama.

Frank e seus parceiros trocam de carro três vezes e o ambiente, úmido e frio, diz muito sobre as suas existências, seres marginalizados que agem na surdina. A fotografia em tons azulados se confunde com a roupa do protagonista, da mesma cor, simulando uma camuflagem.

Após o intenso e silencioso serviço, Frank caminha despretensiosamente, sem direção. Ele cansou disso, tem em sua carteira uma colagem da sua vida ideal e, para atingir tal objetivo, precisa de uma família. Tudo é muito sutil e sigiloso, percebam, por exemplo, a negociação no restaurante – enquanto Frank vende sua mercadoria, observa Jessie, sua futura esposa.

No mesmo espaço, está aquilo que o protagonista deseja abandonar e a vida que pretende abraçar daqui em diante. Ele não gosta de confusões, todavia, quando é sacaneado, é firme e direto. Gags, responsável por coletar o dinheiro, é assassinado, levando Frank a conhecer Leo, um gângster poderoso.

Quando se encontram pela primeira vez, Mann opta por um plano aberto – distância refletida no relacionamento entre os dois. “Sou autônomo. Não lido com egos”. Convincente em sua retórica e, a princípio, amigável, Leo surge como uma oportunidade. Em contrapartida, a polícia, que não seguia os rastros invisíveis de Frank, vigia a conversa dos dois – o efeito do gângster, um peixe grande. Mann não subestima a inteligência dos criminosos, os seres que melhor conhecem as engrenagens dos meios urbanos, sempre um passo à frente dos demais. Frank sai correndo para encontrar Jessie, que o esperava há duas horas em um bar.

Se o protagonista é bem-sucedido por entender perfeitamente os mecanismos do submundo, não podemos dizer que sua compreensão acerca de convenções sociais é tão boa assim. Ele carrega Jessie pelo braço até seu carro e, sem rodeios, fala sobre seus planos, o papel que a moça exercerá em sua vida e sua trajetória até aqui. Por mais egoísta, destrambelhado e agressivo que seja, Frank é inegavelmente honesto. “Você tem que chegar a um ponto onde nada significa nada”, relata o protagonista, relembrando os tortuosos anos que passou na prisão. Ele cansou de ser um sobrevivente, quer experimentar outras sensações, sentar na cabeceira de uma mesa e relaxar. O protagonista apresenta um lado desconhecido, sua tristeza ao falar sobre os onze anos jogados fora e a emoção que demonstra ao mostrar a colagem de fotos para Jessie são palpáveis, provas concretas de sua vulnerabilidade e genuíno desejo de seguir em frente. “Eu já perdi tudo”. Ela, que se contentava com um cotidiano pragmático, pacato e sólido, decide embarcar na loucura lúcida de Frank. O encontro, que havia começado com uma árdua discussão, termina com um belo plano-detalhe das mãos entrelaçadas. O azul, principal símbolo do filme, está presente na mesa e no assento do Diner, salientando a condição dos personagens, acostumados com a escuridão e a desesperança.

O protagonista precisa juntar uma considerável quantia de dinheiro para abandonar o crime de vez e, logo em sequência, já está planejando um ambicioso assalto com Leo e Barry, seu grande amigo. A narrativa é ágil, empática em relação a Frank, que corre contra o tempo. Mann permite que seu “herói” vislumbre o sonho. A roupa vermelha de Jessie é um poderoso símbolo de otimismo, de uma felicidade desconhecida e contagiante. Frank, até então, tratava o seu relógio dourado como uma marca de poder e sucesso, no entanto, ao adentrar as camadas “ordinárias” da sociedade, percebe que suas ações são mais importantes que qualquer objeto valioso. Sua felicidade ao descobrir que Leo pode comprar um bebê para ele no mercado clandestino é tão pura e inocente, que não nota a real intenção daquele ato: o gângster quer submetê-lo, tacitamente, a um contrato vitalício.

Outro momento belíssimo, que expõe o lado sensível do protagonista, é aquele no qual Okla, seu mentor e figura paterna, está prestes a morrer. Frank evita demonstrar sentimentos, considera uma fraqueza e a retórica que adota para distrair o velho amigo denota carinho e melancolia. A polícia, abertamente corrupta, se mete no meio, no entanto, não tem provas para incriminar o protagonista, cujos princípios são inegociáveis. A sala em que ele é espancado é pequena e escura; como torná-la ainda mais claustrofóbica? Fácil, basta enchê-la de policiais ferozes. Ele não abre a boca, não existe ameaça ou cubículo capaz de intimidar Frank. O “último ato” do protagonista no crime é uma obra de arte. O caráter artesanal e árduo do trabalho se confunde com a motivação do “herói”. A trilha suscita um clima de alívio, de missão cumprida, todavia, o luxuoso banco é dominado por paredes cinzas e tons frios – Mann, a todo instante, ratifica a posição de seus personagens e nos prepara, elegantemente, para o desfecho. Frank está na praia com sua mulher e filho, finalmente em um espaço aberto, roupas brancas e próximo do mar, o que dá a ideia de liberdade. Infelizmente, como já era de se esperar, na hora da coleta e do adeus, Leo entrega uma quantia irrisória e fala sobre os próximos assaltos. O protagonista não percebera que vendeu sua alma para o diabo. Sua casa, seu filho e o suborno dos policiais estava na conta do gângster, dono de sua ascendência e liberdade. Ele acreditava que Frank abandonaria tal ideia e demonstrasse “gratidão”, mas não, Frank sabe a diferença entre gratidão e traição.

O contra-plongée e a fumaça evidenciam o poder de Leo e a difícil decisão que o protagonista teria que tomar. O texto de Mann é honesto e pessimista, não suaviza a opção de seus personagens, destinados a uma eterna prisão, sem condicional nem regalias. É como uma rua sem saída, você até pode avançar um pouco e vislumbrar um escape, porém, no fim, se deparará com um muro, uma barreira intransponível.

A escuridão, ainda mais enclausurante, retorna. Frank admite de vez sua condição, assumindo um niilismo estilizado por Mann através do uso de câmera lenta e do design de som, que vai do silêncio absoluto à explosão com muita classe – nada faz sentido, nada importa.

O mesmo elogio serve para o clímax, em que Mann segura a tensão até o último instante, começando com um ângulo baixo e alternando os enquadramentos. O momento em que a trilha entra é catártico – a banda Tangerine Dream nunca esteve tão inspirada. Quando Leo toma um tiro, Mann corta para um quadro mais fechado, enfatizando a brutalidade. A música e a câmera lenta concebem uma atmosfera cool e épica. Frank sai caminhando em direção ao vazio absoluto…

A fotografia não se vale apenas do azul, os tons esverdeados conferem um aspecto doentio e degenerado àquela cidade.

James Caan nunca esteve melhor. Ele é durão e firme como um bom criminoso, todavia, tem sonhos e vulnerabilidades. O esforço que o ator faz para não expressar tais fragilidades é tocante, humaniza o protagonista. Seu rosto é algo a ser observado, repleto de nuances e emoções poderosas.

“Thief” foi a obra que alçou Michael Mann ao patamar de mestre.

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