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Em seu segundo filme, Jim Jarmusch alcançou o nível que o alçou ao patamar de cineasta autoral e influente. Sua estrutura rígida e simples esconde a complexidade de seu discurso. “Stranger Than Paradise” se “limita” a longos planos, muitos deles estáticos, nos quais os personagens conversam, mas nada de muito empolgante acontece. A ininterrupta série de fade in e fade out dita o cotidiano dessas pessoas e dos Estados Unidos, segundo Jarmusch.

A tela preta dá a ideia de vazio e monotonia, assim como o silêncio que toma conta de diversas sequências. A fotografia em preto e branco confere estilo e melancolia ao filme, que apresenta uma América sem identidade. As ruas sujas, fantasmagóricas e decadentes engolem estrangeiros que aterrissam em busca do “sonho americano”.

Willie rejeita completamente suas raízes húngaras. A jaqueta e o chapéu são marcas de um homem que se auto naturalizou. Sua tia avisa que Eva, sua prima, passará dez dias com ele. “Não fale em húngaro comigo”. “Nem sequer me considero da família”. Sua residência é um cubículo, bastante adequado à abordagem minimalista do cineasta. Além de pequeno, o espaço é imundo. Esse é o palco do primeiro ato, cujo título não poderia ser mais irônico.

“O Novo Mundo” é decepcionante, retrógrado e violento. A televisão é a melhor amiga das pessoas e Willie tenta ensinar as regras de futebol americano para Eva, que detesta o esporte. O protagonista se considera um autêntico nativo por se alimentar de “TV Dinner”, um prato feito e pouco apetitoso. Willie não vive o sonho, se entregou a desesperança americana e nem percebe. A Hungria talvez não seja o paraíso, o que não torna essa “terra de ninguém” num bom destino. As cenas exploram a implicância entre os primos e o tedioso cotidiano no qual Eva é inserida. Jarmusch é precisamente econômico, mostrando apenas o que importa para o desenvolvimento da relação. A música do selvagem Screamin Jay Hawkins é um elemento importante, que ressalta o mau humor do protagonista e, posteriormente, o carinho que sente por Eva.

O cubículo nega privacidade, logo, desavenças, diálogos ríspidos e situações repetidas fazem parte de um convívio intenso. A prima muda a chave ao comprar o tal “TV Dinner” e um pacote de cigarros. Na verdade, ela rouba os itens, o que, aos olhos do protagonista, é uma enorme demonstração de afeto. Willie, então, faz um esforço e a presenteia com um vestido. Ele fica orgulhoso de seu bom gosto, no entanto, Eva sequer experimenta a roupa – sua honestidade é inegociável. Jarmusch extrai um humor orgânico a partir de situações assim. Seu filme é, do início ao fim, realista e fiel às suas convicções.

Eva está de partida, vai passar um tempo com sua tia em Cleveland. A monotonia de Willie se multiplica, nos levando a seguinte pergunta: o mito americano é tão poderoso que polui a mente de seres inseguros e ignorantes?

A trilha sonora sutil e melancólica na cena em que Eva arruma a mala é bastante reveladora. Nada de extraordinário aconteceu ali, todavia, pela primeira vez, Willie tinha o mínimo, uma companhia.

Um ano se passa. Ele e Eddie, seu único amigo, após serem pegos roubando em um jogo de cartas, decidem visitar Eva. Os dois são vagabundos convictos, passam os dias apostando em cavalos e cachorros. “Sabe me dizer para que lado fica Cleveland?”

Jarmusch não está interessado em uma história. O longo, modorrento e confuso caminho é extensamente trabalhado por ele, que não economiza em planos nos quais a câmera está dentro do carro, acompanhando o silêncio.

Willie tem vergonha de admitir sentimentos, não pensa muito sobre eles, nem os conhece a fundo para diferenciá-los. Chegando lá, somos apresentados a tia Lotte, uma figura única. Eva está trabalhando numa lanchonete de cachorro quente, seguindo à risca o sonho americano, e é surpreendida pelos amigos, que querem fazer algo. A animação por estar em um novo território dura pouco, Cleveland é igualmente soturna, tomada pelo branco da neve e por um frio insuportável. A escolha do diretor em focar na reação dos personagens no cinema, em vez de mostrar o que se passa na tela, é incrível e se prova melhor ainda quando percebemos que o par de Eva não está ao lado dela, mas Willie – instinto protetor.

A monotonia é uma praga que os persegue. Com dinheiro e um carro, os amigos decidem dar uma última chance à sorte, optando pelo extremo. A imagem idealizada em suas mentes em relação à Flórida é a de um verdadeiro paraíso, com praias e moças de biquíni. Após outra longa e extenuante viagem, os três chegam a um lugar que se assemelha mais com um cartão postal brega. Da mesma forma que Willie cuida de Eva como uma integrante de sua família, ele também se sente no direito de deixá-la para trás. Eddie o convence a apostar em cachorros e a moça fica o dia inteiro no hotel – e claro que Jarmusch reforça essa solidão com os artifícios que nos levaram até aqui.

Os dois perdem todo o dinheiro e decidem ir nos cavalos. Nos últimos dez minutos, o diretor estabelece desencontros minuciosamente calculados, dando um humor peculiar à obra, que não perde sua identidade. Nada soa inverossímil e o cuidado de Jarmusch ao enfatizar certos “gostos” dos personagens desde o início é fundamental para a genial ironia final. Só posso dizer que cada um termina em um canto diferente.

John Lurie é cool o suficiente para personificar o cinema de Jarmusch. Sua química com Eszter Balint e Richard Edson é incrível, fundamental para a autenticidade do filme.

“Stranger Than Paradise”, a primeira obra prima de Jim Jarmusch, desmascara a euforia americana.

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