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No texto que escrevi sobre “Faça A Coisa Certa”, disse que aquele filme só poderia ter sido realizado por Spike Lee. O mesmo vale para “Coffee And Cigarettes”. Qual cineasta pensaria em uma obra contendo onze esquetes nas quais os personagens apenas conversam, bebem café e fumam?

Ouso dizer que qualquer outro que tentasse fazer algo do tipo, falharia miseravelmente. Jim Jarmusch é cool por natureza, um dos raros artistas que encontra o equilíbrio perfeito entre estilo e conteúdo.

Ao longo do filme, percebemos que existe uma preocupação em relação a rimas temáticas e de linguagem. O picolé de café, a bizarra teoria de que a cafeína induz o humano a sonhar mais depressa, a nada saudável “alimentação” envolvendo os elementos que dão nome ao título, a similaridade entre música e medicina e a percepção de Nikola Tesla acerca da Terra como um condutor de ressonância acústica são ideias que se repetem em determinados segmentos. O mesmo vale para as mesas ou jogos americanos xadrez e o uso de plongées, que, ao lado da extraordinária fotografia em preto e branco, dão uma surpreendente beleza àquele amontoado de xícaras e maços de cigarros. A direção de arte não chama a atenção para si, ainda assim, rouba boa parte do filme, reafirmando o posto de Jarmusch, o cineasta mais cool da história da sétima arte.

Roberto Benigni pede a Steven Wright para ir em seu lugar numa consulta ao dentista; um casal de gêmeos discute com Steve Buscemi, que interpreta um garçom enxerido, sobre Elvis Presley; Joseph Rigano tenta convencer Vinny Vella, no melhor estilo “máfia italiana”, a parar de fumar e a se alimentar normalmente; Isaach De Bankolé não se conforma com a tranquilidade de Alex Descas, que o chamou para conversar e não expõe nenhum descontentamento, no entanto, assim que o outro sai, ele volta a jogar dados, o que, talvez denote um vício pela jogatina.

As esquetes impressionam pelo naturalismo, os diálogos orgânicos e os desentendimentos, fomentados em pouquíssimos minutos, são brilhantemente orquestrados. Além do excelente texto, há de se exaltar o elenco estelar que somente Jarmusch poderia reunir. O filme é tão coeso e consistente, que os segmentos citados acima são, muito provavelmente, “os mais fracos”.

Iggy Pop faz de tudo para agradar Tom Waits, todavia, só deixa o ambiente mais pesado. O silêncio é gradativo, assim como os close ups que evidenciam a estranheza daquele peculiar encontro. O plongée divide a longa mesa do Diner, estabelecendo uma rivalidade entre os músicos, que pararam de fumar há tempos. O prêmio para aqueles que abdicaram da nicotina, é a possibilidade de fumar um “cigarrinho” de forma despreocupada. As reações aqui são impagáveis, eles estão em sintonias opostas e Iggy, por mais simpático que tente ser, desperta apenas o mau humor em Waits, naturalmente ranzinza. O líder do “The Stooges” também provoca quando pode, afirmando, por exemplo, que nenhuma música do amigo está no jukebox. Iggy, percebendo a furada na qual se meteu, inventa uma desculpa para ir embora. A primeira coisa que Waits faz, então, é checar se seu colega tem alguma canção no estabelecimento. Sua satisfação ao perceber que não, é digna de mais um cigarro, cuja fumaça marca a acidez do fatídico encontro.

Em “Cousins” – sim, cada esquete tem um título -, Cate Blanchett interpreta a si mesma e Shelly, sua prima “pobre”. Carinho e rancor se misturam em outro momento extremamente desconfortável. Jarmusch toca na ferida das estrelas, que esquecem seus entes queridos, vivendo em uma realidade paralela. Cate não tem uma casa, muda de país semanalmente e fala com um ar de superioridade que ressalta seu estilo de vida. Em contrapartida, Shell se veste como uma punk, abusa de gírias e senta desconjuntadamente. Cate não recebe suas cartas e não consegue gravar o nome de seu namorado, dito um segundo atrás. Elas fumam no saguão do hotel, no entanto, quando a atriz sobe, Shell é avisada de que fumar é proibido naquele local…

Cate a presenteia com perfumes que ganhou de seus patrocinadores. Enquanto Shell batalha para ganhar uma merreca, a prima milionária recebe presentes glamourosos. Outro detalhe fascinante que salienta a diferença entre as duas é que a atriz se encosta numa poltrona preta e Shell, numa branca. Cate Blanchett oferece a melhor interpretação do filme, suas composições são contrastantes e repletas de nuances.

Jack White mostra para Meg – irmãos e líderes do White Stripes – sua bobina de Tesla. Ele surge como um jovem erudito, enquanto ela parece desinteressada e pouco inteligente. Jack fala como se fosse um físico, até que sua “criação” pifa e Meg, sorrateiramente, indica o erro. As posições se invertem e a reação desacreditada do irmão é sensacional. O senso de irmandade e carinho são notáveis também, tornando este um dos segmentos mais agradáveis.

Em “Cousins?”, Alfred Molina convida Steve Coogan para tomar um chá, afinal, são ingleses e não perdem tempo com cafeína. Molina infla o ego de Coogan, que personifica magistralmente o britânico metido e convencido.

-Eu e você somos primos.

-Em que sentido? Artisticamente?

Molina apresenta uma extensa árvore genealógica, provando seu ponto e planejando um ambicioso projeto sobre essa “fantástica história”, quem sabe um filme. Ele entende que a agenda ocupada de Coogan possa ser um empecilho e está disposto somente a passar férias e ser amado pelo primo. “Você é gay?”, pergunta Coogan, educadamente, que inventa uma desculpa esfarrapada para não passar seu número de casa. O jogo se inverte quando um famoso diretor liga para Molina, despertando interesse em Coogan. Comicamente essa é a esquete mais inspirada, graças ao inesperado twist, ao texto e às reações dos atores.

GZA e RZA, do Wu-Tang Clan, dispensam a cafeína por seus efeitos alucinógenos e depressivos. O segundo, além de rapper, é especialista em medicina alternativa. Eles se deparam com Bill Murray, disfarçado de garçom, viciado em café e nicotina. O encontro geracional é tão “jarmuschiano”, que não temos outra reação, a não ser sorrir. “Delírio” se mostra um título bastante apropriado à esquete.

Por último, temos o segmento mais melancólico e belo. Em meio a grades e um espaço tomado pela escuridão, William Rice e Taylor Mead estão no intervalo da casa de repouso. O segundo tem uma ideia: fingir que o péssimo café é champanhe para que possam brindar e celebrar a vida. A imaginação é o que lhes restou e a música de Mahler, que advém do “nada”, é uma sacada delicada de Jarmusch. Eles fingem que estão felizes e que está tudo bem; brindam ao passado, à Paris nos anos vinte e à Nova Iorque no final da década de setenta.

Açúcar, café, leite, cigarros e fama são vícios, o mote da obra de um cineasta inigualável.

“Coffee and Cigarettes” é o filme mais cool e subvalorizado de Jim Jarmusch.

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