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Levando em conta somente a história, “Poor Things” é, muito provavelmente, o filme mais convencional de Yorgos Lanthimos. Após se suicidar, uma mulher grávida é “resgatada” pelo cientista Godwin Baxter, que consegue reanimá-la. A fim de lhe dar uma nova vida e, claro, de experimentar, ele realiza um transplante de cérebro, colocando o do bebê na cabeça da adulta.

Dessa forma, “nasce” Bella Baxter, cujo desenvolvimento é minuciosamente observado, o que é reforçado pelos diversos planos nos quais vemos a protagonista comer e brincar, por exemplo. Godwin nega emoções, afirma ser um homem da ciência, todavia, sua criação parte também de uma condição crônica: a solidão que assola sua existência desde a infância, potencializada por sua aparência deformada.

O plongée, utilizado no momento em que os dois se abraçam, é um símbolo de uma relação de dependência e também do domínio que Godwin exerce sobre Bella, uma recém-nascida. O cientista adora que a protagonista o chame de “God” – naquela casa, ele é, de fato, uma espécie de Deus. Bella, com o tempo, amadurece e percebe que a casa, os cuidados e a proteção excessiva eram, na verdade, grades que a impediam de saciar curiosidades inatas aos seres humanos.

Em sua trajetória, ela se depara com homens tóxicos e controladores. Este não é o caso do cientista, que, acostumado com rejeições, não esconde sua insegurança ao notar os anseios de sua “filha”. A casa é antiga e grandiosa, remete a um museu e é precisamente equipada para possíveis fugas – nesse sentido, o cadeado é definitivo.

Godwin faz o que está a seu alcance, sabe que Max, seu assistente, gosta de Bella e propõe um acordo: eles podem se casar, porém jamais abandonarão a residência. A protagonista evolui rapidamente, indo de um bebê com instintos primitivos – o fascínio pelo sangue advém de sua educação e é um detalhe interessante – para uma adolescente sexualmente imparável. Ela enfia qualquer tipo de fruta em sua vagina e quer fazer o mesmo teste nos demais. Em determinada sequência, o quadro se fecha até chegar a um plano detalhe de sua boca exalando prazer; na cena seguinte, ela está sentada na mesa com um vestido com uma gola alta que parece estrangular seu pescoço – tolhida.

Suas curiosidades não conversam com o seu tato social, afinal, desconhece qualquer convenção e o que é aceito em público. É exatamente aí que reside o humor em “Poor Things”. Por mais jovem que seja, Bella habita o corpo de uma mulher adulta e esse contraste é perfeitamente trabalhado por Emma Stone. Suas expressões faciais mudam sutilmente, indo da ingenuidade infantil ao prazer puramente carnal e, por último, para a compreensão de sua força e lugar dentro da sociedade sem que qualquer aresta fique solta no meio do caminho.

O olhar maravilhado da criança, a passividade de uma jovem cerebral e a maturidade se alinham com a maneira que ela se movimenta.

Duncan, o advogado responsável pelo pacto pré nupcial, se interessa pela pobre criatura e promete libertá-la. Godwin permite a fuga, num ato de pura empatia. A jornada se inicia em Lisboa e, basicamente, a cada corte, eles estão transando. O timing cômico da montagem é notável e nunca falha ao superar as expectativas do espectador, que ri com a libertinagem da protagonista. Bella desconhece o termo “sexo”, então o apelida de “saltos furiosos”.

“Até eu tenho meu limite”, afirma Duncan, que se gaba por ter as mulheres aos seus pés. “É um problema fisiológico?”, ela pergunta, revoltada com o cansaço do amante, após cinquenta “saltos furiosos”.
No primeiro ato, a fotografia em preto e branco tinha a intenção de reforçar a existência embrionária de Bella e a prisão a qual estava submetida, responsável por limitar sua imaginação. Se em termos de trama, “Poor Things” chega a ser previsível, narrativamente, é espetacular. Lisboa marca a obsessão por sensações, experimentar tudo vorazmente, sem entender a importância e o efeito de certas ações. Quando ela escuta uma música, não tem ideia de que a melodia a proporcionará emoções tão fortes, o mesmo vale para a enorme garrafa de alguma bebida alcoólica e para um doce saboroso, mas que lhe garantirá uma intensa dor de barriga.

Bella diz o que pensa, é demasiadamente autêntica e, aos poucos, compreende a importância da polidez social.

Visualmente, esta é a obra mais ambiciosa de Lanthimos, que molda o seu universo bastante particular à ótica da protagonista e às fases pelas quais atravessa. A inventividade das equipes de direção de arte, fotografia e efeitos visuais é impressionante, sem dúvida alguma, o ponto alto do filme – ao lado da performance hipnótica de Emma Stone. As estranhas e orgásmicas novidades são acompanhadas por um universo fantasioso, que vai ao encontro da mentalidade da protagonista. Cores quentes – destaque para o amarelo -, bondes futuristas, um céu artificial, espaços abertos, salões luxuosos e cenários lúdicos nos imergem a uma Lisboa singular.

O contraste está no figurino da moça, azul em tom pastel, evidenciando sua ingenuidade. Duncan, que, a princípio, esbanjava segurança e carisma, demonstra ser um homem frágil e patético, um autêntico canalha. Seu objetivo não é libertar Bella, mas tê-la para o seu bel prazer – uma nova prisão. Assim que adquire uma personalidade própria, ela o rejeita e experimenta novas sensações, como o ódio e a raiva. Duncan despeja sua frustração na jogatina e na bebida, se tornando mais imbecil e dependente. Essa é uma das várias contradições do excelente roteiro: Bella é a criatura recém-nascida, no entanto, praticamente todos os homens se mostram imensamente submissos e vulneráveis a ela, a figura dominante nas relações.

Mark Ruffalo compõe Duncan como um sujeito ridículo e exagerado, se encaixando brilhantemente naquele universo particular. Sua expressividade, contraposta pela ultra racionalidade da protagonista, que o dispensa sem qualquer inflexão vocal, é engraçadíssima. Das sensações primitivas, Bella parte para a realidade em sua ótica mais honesta e desalentadora.

A protagonista enxerga a miséria e a violência, descobre que o mundo não se limita a sexo ao se aproximar de uma idosa e se interessa por filosofia. Sua visão ampla e empática, inicialmente ingênua e impactada, é moldada a ponto de perceber que não tem muito o que fazer, a não ser se salvar em um mundo apodrecido.

Bella não deve atender às exigências, pode escolher ser quem quiser e suas opções, apesar de deixarem o espectador confuso, são ricas. Para alguém que havia dispensado um homem possessivo e chorão, a prostituição não parece a melhor ideia. O quarto decadente e as moças experientes são fundamentais em seu amadurecimento e evolução enquanto mulher. Não é como se Bella fosse forçada a vender o seu corpo, a escolha é dela e esse é um dos grandes baratos de seu arco. 

A protagonista se desprende de qualquer amarra, fazendo apenas o que tem vontade, aquilo que entende ser importante e relevante. O bordel muda e expande sua percepção acerca do sexo, além de colocá-la em contato com causas sociais. Se em Lisboa tudo era mágico e extraordinário, em Paris, Bella usa roupas cotidianas – cores pouco chamativas – e os ambientes se aproximam da normalidade, assim como a fotografia, que adota uma atmosfera “quase naturalista”. A neve e os tons frios não são caprichos visuais, têm a ver com a visão mais complexa, triste e sensível em relação a um universo adoecido. No retorno à Inglaterra, para visitar Godwin, prestes a morrer, a abordagem pouco se altera – Bella enxerga as coisas como realmente são. Afinal, ele é um monstro ou uma vítima? Ela enxerga a maldade em seu ato, porém não consegue desassociar-se do carinho e do amor que sempre recebeu. Sua maturidade emocional é construída com calma e cuidado, etapas não são puladas e seu arco é igualmente belo e revelador. Em um diálogo, por exemplo, notamos que são os homens que têm um problema maior com a prostituição, não as mulheres, o que é no mínimo curioso.

Willem Dafoe oferece uma performance sutil, cômica e sensível. É difícil transmitir diferentes sensações coberto por próteses e ele consegue com a maestria que lhe é peculiar.

Yorgos Lanthimos é um cineasta autoral e a sua predileção por lentes grandes angulares, responsáveis por deformar as laterais e dar profundidade aos cenários, merece um destaque especial. O artifício, quando utilizado para ressaltar o “aprisionamento” de Bella e dar vida aos universos irreais e estranhos concebidos por um cérebro em formação, se prova essencial, diria que preponderante para o êxito do filme. No entanto, Lanthimos, diferentemente do que apresentou em outros trabalhos, se escora nesse recurso e exagera. Às vezes parece que ele quer mostrar quão genial e talentoso é.

As grandes angulares, eventualmente, cansam a vista do espectador e a obra fica um tanto enjoativa. Lanthimos movimenta sua câmera elegantemente e também opta por detalhes importantes, como, por exemplo, a distância entre personagens na mesa – física e espiritual. Sua direção é grandiosa, mas torço para que essa certa auto indulgência não se torne frequente nos seus próximos trabalhos.
Nos minutos finais, o roteiro adiciona outro personagem e se apressa para terminar a história, apresentando um desfecho coeso, porém abrupto – a natureza colorida e as “pessoas certas” salientam o otimismo do texto.

A trilha sonora dissonante é um elemento que enriquece a narrativa e que conversa com a “distorção” da realidade.

“Poor Things” é mais um grande filme na carreira de Yorgos Lanthimos.

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