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“Ponyo”, o décimo filme do gênio Hayao Miyazaki, inicia com uma longa sequência no fundo do mar. As criaturas diversas e as particularidades envolvendo o ambiente são marcas registradas do cineasta. No entanto, o que mais chama a atenção é o contraste que ele confecciona entre a beleza da vastidão do oceano e a poluição. Não falo apenas de toxinas, mas de objetos pequenos, como, por exemplo, uma garrafa que fica presa na cabeça do peixe dourado que dá nome ao título.

Próxima da superfície, Ponyo se depara com uma luz radiante – a esperança de um lugar melhor. Ela vai parar nas mãos de Sosuke, um garoto que, instantaneamente, se encanta pela criatura. A maneira como ele segura o braço, expondo nervosismo, e chora ao achar que sua nova amiga morreu são provas de que Miyasaki se atenta também a detalhes que humanizam seus personagens ao máximo. Nem todos são como Sosuke, nem todos valorizam a natureza. Em uma de suas histórias mais acessíveis para o público infantil, o realizador japonês estabelece uma linda relação entre o ser humano e o animal; a terra e o mar. Enfático em sua crítica a destruição do meio ambiente, Miyasaki encontra na pureza das crianças uma forma de coexistir e de reforçar a importância do amor num universo tão nocivo.

O pai de Ponyo, Fujimoto, uma espécie de Mestre do oceano, utiliza seus poderes, traduzidos em ondas gigantes formadas por peixes – isso mesmo -, para capturá-la. Apesar de sua caracterização sinistra e de ser visto pelo espectador como um antagonista, seu ódio perante os humanos, considerados monstros, é justificável, afinal, ele já foi um deles. Ponyo, em uma reação rebelde e libertadora, ganha pés e braços e transforma o castelo frio em um espaço encantado, dominado pelo dourado e por animais majestosos. Dessa forma, e com a ajuda de suas irmãs, ela retorna à superfície, agora humana.

A mãe de Sosuke trabalha num lar de idosas. A falta de luz é reparada quando o garoto oferece presentes e demonstrações de afeto para as senhoras cansadas. No retorno para casa, Sosuke e Lisa encontram Ponyo, que corre em direção ao amigo e o abraça calorosamente. Os olhares confusos logo se modificam, esbanjando ânimo. Para Miyazaki, a união entre tais criaturas simboliza a harmonia em seu estado máximo, um mundo sem feridas, doenças e desânimo. A fuga de Ponyo desencadeia um abalo na cadeia ecológica, dando início a um tsunami de proporções homéricas.

Para que as coisas voltem ao normal, a protagonista precisa retornar ao mar ou ser definitivamente aceita em seu novo formato. A verdade é que Ponyo é ainda mais adorável como criança. Seu ânimo para comer, a agitação infantil e o sono repentino são tão fascinantes quanto a apoteose imagética proporcionada pelo diretor. Em determinado momento, Lisa diz que a casa é um farol de esperança para aqueles que estão perdidos no mar. Considerando os seres que habitam a residência, a predominância por detalhes verdes – o amor pela natureza – e sua localização – de frente para o mar e em volta das árvores -, podemos afirmar que essa frase sintetiza a obra.

A mãe de Ponyo, a Deusa do oceano, é uma figura celestial e brilhante que destila empatia e amor. Contraponto perfeito para Fujimoto, ela não pretende aprisionar a filha, quer apenas entender seus anseios e as intenções de Sosuke. O quadro em que vemos sua mão em primeiro plano, como se encostasse na casa do garoto, reforça seus ideais, além de ser esteticamente maravilhoso. Ponyo só assumirá a forma humana quando Sosuke apresentar uma demonstração verdadeira de amor e o filme inteiro é repleto delas. Com os poderes da protagonista e a paixão de Sosuke, os dois enfrentam a enchente, a caminho do desafio final.

Miyazaki apresenta uma interessante inversão na cadeia ambiental, na qual os animais aquáticos invadem o asfalto e as ruas. Provando do próprio veneno, os seres humanos se encontram numa situação desesperadora. O plano dos amigos, de mãos dadas, andando pela natureza ensolarada é extraordinariamente belo. Não precisamos de diálogos para compreendermos a magnitude da relação, Miyazaki confia em sua imaginação para conceber os fotogramas mais espetaculares já vistos em uma animação. Seu caos é harmonioso. Sua capacidade para encontrar soluções e surpreender o espectador com novos poderes e cenários é imbatível, o que pode ser evidenciado no embate entre Sosuke e Fujimoto. Os peixes não são apenas peixes e o mar tem consciência própria.

Uma questão importante e que pode ser interpretada de diversas formas é o motivo da tempestade. Seria um desequilíbrio ecológico? Não, o realizador japonês não pararia por aí. Acredito que esteja ligada ao tamanho da repressão enfrentada por Ponyo, que não pode escolher o que deseja ser. E, também, ao impacto da amizade entre “inimigos”.

“Pode aceitá-la como ela é?”, pergunta a Deusa do oceano para Sosuke – os subtextos são inúmeros e se encaixam nas mais variadas discussões atuais. As senhoras voltam a sorrir e a correr, o ecossistema se encontra em equilíbrio, o céu brilha e o amor reina – o simbolismo de uma amizade que transcende fronteiras, a obviedade e encerra conflitos.

“Ponyo”, assim como praticamente todos os filmes de Hayao Miyazaki, foi inteiramente desenhado à mão, um trabalho de fato artesanal e pessoal. A simplicidade infantil se mistura com inventividade de um mestre incansável e com a poesia por trás de certos fragmentos. A cena em que a protagonista salta pelo mar, com a ajuda de ondas “vivas” é particularmente impressionante.

Os simples detalhes de uma casa que exala afeto e amor pela natureza se confundem com a magnitude de um universo fantasioso. As animações podem tudo, mas somente Miyazaki pode fazer filmes assim. Seus traços pictóricos poderiam ocupar uma galeria de arte inteira.

“Ponyo” é uma obra prima que irá agradar igualmente adultos e crianças.

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