“One From The Heart”, o filme que fez Francis Ford Coppola falir, é um daqueles “fracassos” incompreensíveis. Sem dúvida alguma, é a sua obra mais vistosa e ambiciosa.
Trabalhando unicamente em estúdio, o diretor encontrou a mescla perfeita entre o realismo e a magia dos musicais. O uso de cores marcantes e contrastantes é bastante expressivo e dita o tom do filme.
A fotografia, por exemplo, tem como principal intuito expor o que os personagens estão sentindo. Em um mesmo espaço, podemos ter, primeiro, um vermelho intenso, que muda de conotação de acordo com a trama – desejo, paixão, culpa e raiva -, e, depois, um verde opaco, que traz uma sensação de impotência e solidão. O roxo é intenso e caminha numa linha tênue entre a felicidade, a tristeza e algo esteticamente lindo. O azul é utilizado de uma forma interessante, servindo como pano de fundo para idealizações amorosas, também ressaltando a melancolia conferida pelo roteiro. O dourado está diretamente relacionado a sonhos e aspirações.
Coppola sabe que a junção de todas as cores no centro de Las Vegas é responsável por um efeito hipnótico.
Uma cena que reafirma o poder do cinema como uma arte imaginativa, que não precisa estar associada ao realismo para ser profunda, é aquela em que Hank está chorando sozinho na casa escura, até que Frannie aparece e as luzes, “misteriosamente”, acendem e os dois se beijam.
A direção de arte é um show à parte. Os grandes letreiros em neon fazem parte de Las Vegas, alguns restaurantes e apartamentos são bastante convincentes, no entanto, o que realmente chama a atenção, é a inventividade dos realizadores, que conceberam cenários imaginativos, belos e que cabem impecavelmente dentro do filme. A pista de dança no meio da rua, o enorme copo no qual Leila dança e os locais em que os protagonistas se divertem com seus novos pares são coloridos, belos, lúdicos e narrativamente essenciais. A casa de Hank e Frannie é bagunçada e um tanto decadente, mas tem na simplicidade o seu charme. Coppola não se vale apenas do espetáculo, detalhes assim são fundamentais e elegantes, justamente porque o casal é formado por pessoas simples, que nutrem um amor comum, encontrado em qualquer esquina, o que não o faz menos especial, pelo contrário, apenas mais relacionável. Vemos claramente a artificialidade de certos lugares e, como mencionei, isso é uma forma inteligente de homenagear um gênero tão reprisado e que tem como um de seus pilares a “farsa” – no bom sentido, obviamente.
Coppola teve dinheiro para construir a sua Las Vegas, uma cidade na qual a maior aposta é o amor e a mergulhou num festival de cores e uma atmosfera jazzística.
Falando em Jazz, outra escolha fenomenal do diretor foi optar por um musical no qual as músicas são interpretadas por cantores, não pelos atores, dando um tom mais melancólico e suave – contrastando com o frenesi das ruas. As vozes de Tom Waits – rouca – e de Crystal Gayle – angelical – combinam, cumprindo as funções de alma e coração do espetáculo.
A montagem realiza um trabalho fascinante ao focar em cortes “invisíveis”, que apresentam planos similares dos protagonistas em suas respectivas aventuras noturnas. A imagem dos rostos sobrepostos também é bastante impactante.
Sinceramente, não sei se Coppola já esteve tão inspirado. Seu controle perante o ritmo da obra é impressionante. Ele se arrisca, faz escolhas duvidosas e acerta em todas. A começar pelos planos longuíssimos, responsáveis pela agilidade e pela elegância do filme. O diretor confecciona desencontros e encontros em um único plano, movimentando sua câmera de acordo com a intensidade dos passos dos personagens, sempre revelando algo inesperado. Há um plano sequência no qual Hank começa rindo e bem-humorado para obter uma informação importante da melhor amiga de Frannie. Ainda que o tom cômico se mantenha, a cena não possui cortes e muda de ambiente.
Esses movimentos de câmera conversam diretamente com a trilha sonora. Há uma espécie de suavidade e leveza em tudo que Coppola faz, até mesmo nos momentos mais tensos e tristes. Admitindo a “artificialidade”, ele chega a criar uma teatralidade, mostrando onde as paredes terminam, principalmente nas sequências em que Hank desabafa com um colega e, atrás dele, Frannie, em um cenário, conversa com sua amiga. As luzes se apagam, os focos mudam, porém os espaços são colados um no outro. Quando a escuridão toma conta, as silhuetas dos rostos quase se tocam – um dos planos mais belos do filme. Na busca por novos pares, os protagonistas caminham pelo centro da cidade e Coppola, a princípio, utiliza o mesmo ângulo para enquadrá-los, admitindo que ambos estão igualmente perdidos.
O diretor tinha em mente sequências ambiciosas, que, às vezes, podem ser boas no papel, mas péssimas na tela e isso, felizmente, não acontece aqui. Cenas como a que Leila anda no fio, enquanto Hank rege uma orquestra de “carros” e aquela na qual Frannie e Ray dançam na Bora Bora imaginária são extraordinárias.
Não poderia deixar de exaltar os figurinos, cujas cores são basicamente as já citadas. Destacaria a vontade genuína de Hank de mudar o visual, resultando numa cafonice agradável e necessária. Ele não é daquele jeito.
Juntos há cinco anos, Hank e Frannie estão prestes a comemorar o aniversário de namoro, no entanto, acabam brigando, despejando certas mágoas passadas, envolvendo traições e insatisfações bestas, acarretando a separação. Irritados e temendo a solidão, partem em busca de alguém. Frannie encontra Ray, um garçom que toca piano e canta, já Hank, se depara com Leila, uma dançarina que trabalha no circo. É inegável que o relacionamento chegou a um estágio em que nada faz sentido e que aquela pessoa especial mudou completamente. O tempo passa, o show deve continuar e suas novas companhias são interessantes o bastante para entretê-los por um período. Ray é animado e simpático, conhece Bora Bora e faz promessas para Frannie, cuja insegurança está na forma como anda e na demora para se arrumar. Leila é delicada e bela como uma flor e encanta o protagonista – assim como o espectador -, porém, na medida em que a trama se desenvolve, percebemos que, apesar dos bons momentos, Frannie e Hank não conseguem ficar muitas horas distantes um do outro. Se amam demais e não podem desperdiçar essa raridade, têm somente que aprender a respeitar certas diferenças, o que não é simples, mas necessário.
Coppola não poderia ter armado um fim mais belo, todas as suas ideias e pretensões se reúnem em uma sequência arrebatadora.
Teri Garr está excelente como Frannie, uma sonhadora nata, que trabalha vendendo passagens, observando os outros viajando e não fazendo nada de significativo com a sua vida. Ela desconta no namorado, mas a verdade é que por mais imperfeita que fosse, a idealização estava ali. Coppola apresenta toda a complexidade em torno do amor. A atriz passa a dificuldade que a protagonista tem para tomar as rédeas de uma discussão e a insegurança que a rodeia – Frannie não se considera interessante.
Frederic Forrest, no entanto, é o grande destaque do elenco, dando vida ao turrão Hank com muita naturalidade. Existe uma certa dose de comicidade na sua caracterização, porém, sua dor, difícil de ser exposta por sua rígida personalidade, é o que realmente eleva sua performance. A chuva torrencial é simbólica, estava presa em seu peito há tempos. É fácil vê-lo como um sujeito durão, contudo, Hank é muito mais que isso: suas últimas palavras para Leila e a cena no aeroporto são provas concretas de sua sensibilidade.
Assim como em “Moulin Rouge!”, as cortinas se fecham. O espetáculo acabou.
“One From The Heart” não deve nada a nenhum filme de Francis Ford Coppola. Uma obra prima que merece ser revisitada e colocada em seu devido lugar.
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