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Lou é o tipo de pessoa que fuma enquanto escuta um aviso sobre os malefícios da nicotina. Ela limpa privadas numa academia, o que vai ao encontro de seu cansaço e palidez habituais. A solidão é a sua única companhia, seu pai é uma figura bizarra, sua irmã namora um sujeito asqueroso e sua mãe sumiu há anos. A escuridão e os feixes de luz verde ressaltam quão abandonadas são as pessoas naquela região. É a chamada terra de ninguém, onde crimes são acobertados e sonhos se dissipam. Os olhares de Lou para Jackie são recíprocos e indicam um genuíno interesse. Pouco antes, vemos Jackie transando com JJ – o tal sujeito asqueroso – em uma cena brutal, a troco de um trabalho qualquer. As duas estão no mesmo patamar, mulheres à margem da sociedade, pisoteadas e jogadas no chão. Na academia, Jackie é um fenômeno, capaz de enfrentar qualquer homem. Elas, então, iniciam um romance ardente, no qual sexo e companheirismo caminham lado a lado. A diretora Rose Glass merece elogios por não aliviar em tais sequências, afinal, estamos falando do amor num universo sombrio. O quadro, invariavelmente fechado, revela a gradual intimidade entre o par, mas também a angústia que a jornada proporcionará. A montagem cria rimas interessantes, combinando, por exemplo, o ato sexual e a gema do ovo entrando de volta na casca. Em outro momento, Lou chuta a porta e o som é complementado pelo tiro que seu pai dispara – raccord. A trilha sonora é fundamental na concepção de uma atmosfera sensual, assim como o vermelho – principal símbolo do filme, assumindo diversas conotações. Lou, antes inexpressiva, se torna uma personagem enérgica e dominada por emoções contrastantes. Seu amor por Jackie e ânimo por viver são intensamente proporcionais ao medo de perdê-la. Seu passado, que pouco interessava, passa a atormentá-la. Existem segredos que podem destruir seu conto de fadas e essa ansiedade juvenil e orgânica é perfeitamente transmitida por Kristen Stewart – suas reações são um show à parte.

Outro ponto importante levantado por Glass é a busca de Jackie pela perfeição. Bodybuilders malham para vencer competições e para manter um corpo escultural. O uso de câmera lenta é sensacional ao enfatizar o fascínio pelo exercício/poderio físico. Ela nunca recebeu a devida atenção, foi adotada aos treze anos e a musculação, nesse sentido, é simbólica. Novas portas se abrem, os anabolizantes são drogas sedutoras e de resposta imediata. A cineasta reforça o vício a partir de planos-detalhe dos músculos e veias de Jackie saltando. Seu comportamento é preocupante e o design de som evidencia sua gradativa autodestruição – ela escuta barulhos nebulosos, não vozes inteiras. Sua fisionomia é a de uma pessoa adoecida, indo na contramão de seu objetivo. Glass nos oferece a visão do inferno, quando somos incapazes de diferenciar o real do imaginário – claro que os ângulos holandeses não poderiam faltar. A imagem fica turva, as letras se movem e sua consciência funciona em outra rotação. A fim de provar seu amor para a protagonista, ela assassina JJ numa das cenas mais brutais filmadas recentemente – o contra-plongée marca o prazer pela morte. O pai de Lou, colega do falecido, rapidamente desvenda o mistério, obrigando sua filha a tomar uma escolha: entregar Jackie ou finalmente contar a polícia todos os crimes cometidos por ele. Estamos diante de uma fábula sanguinolenta, uma história de amor tão pura quanto grotesca. A protagonista se vê num labirinto de difícil saída, é atormentada por crimes que não cometeu e, ainda assim, sabe exatamente o que fazer. Sua vida, até então, se resumia ao acúmulo de traumas, um vazio “crônico” e relações apodrecidas. Nada a impedirá de correr atrás de Jackie, por mais descontrolada que esta esteja. Lou veste uma capa, é a heroína do conto imoral e infernal. Ela assume as dores da namorada, a traz de volta para a realidade e despista os capangas do pai. Glass nos pega desprevenidos e constrói tensão com muita propriedade. Em determinada sequência, há um corpo enrolado num tapete atrás do sofá de Lou, que é surpreendida pela presença de policiais. Uma única gota de sangue é suficiente para atrair o gato e um dos oficiais revista a casa, enquanto o outro faz perguntas. Junte isso e o olhar inquieto da protagonista a um trabalho de montagem espetacular e você dificilmente não ficará na ponta cadeira.

O vermelho, mencionado acima, está por todos os lados – destacado pela direção de arte, fotografia e figurinos. Esse artifício não está ligado necessariamente a uma abordagem naturalista, podendo surgir “do nada” para pontuar sensações, temores e a própria violência. O resistente fio que une Lou ao seu pai é vermelho. Para seguir em frente, ela precisa derrotar seu maior pesadelo, o diabo em pessoa, o mal que corrói suas esperanças. O desfecho reserva momentos bonitos, que reforçam o poderoso laço entre as amantes – eu não me lembro se o termo “estar nas nuvens” havia sido visualmente traduzido dessa forma. O mais fascinante é a facilidade que Glass tem em unir brutalidade e paixão, compreendendo a natureza das personagens e o ambiente em que habitam. A violência, em seus últimos minutos, chega a ganhar contornos irônicos e fortificantes.

A fotografia e a direção de arte confeccionam ambientes escuros, pouco convidativos e decadentes.

Ed Harris está excelente, seu personagem é sinistro a ponto de devorar uma larva e o ator torna sua ameaça palpável sem muito esforço.

Katy O’Brian atravessa um arco poderoso, encara uma enclausurante autodestruição que se mistura com a sensação de estar apaixonada, transformando Jackie numa verdadeira bomba relógio – enorme, por sinal.

Kristen Stewart oferece a melhor performance do filme, provando que é, de fato, uma atriz talentosa e versátil. Iniciando com uma passividade moribunda, Lou experimenta sentimentos poderosos. Ela está disposta a colocar o sonho na frente de LITERALMENTE qualquer coisa e Stewart, além encarná-la com cuidado e honestidade, é uma figura simpática, pela qual torcemos.

“Love Lies Bleeding” é um filmaço, mais um na curta carreira de Rose Glass.

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