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“La Cocina” é um espetáculo audiovisual, um filme que dura mais de duas horas e que se concentra basicamente na cozinha de um restaurante. Estela chega em Nova Iorque de barco. O foco nos pássaros voando e a utilização da técnica Step Printing – multiplicação de frames por segundo -, confere um aspecto bastante particular à imagem, ressaltam a expectativa da jovem mexicana. O senso de liberdade é rapidamente quebrado quando ela adentra o restaurante onde Pedro, um parente, trabalha. A maioria dos funcionários é formada por imigrantes ilegais. Os mais “veteranos” já ouviram o chefe falar sobre a possibilidade de um Greencard, no entanto, o tempo provou que esta é apenas uma jogada para manter a moral deles elevada. O filme se mantém numa permanente mudança de tom, indo da harmonia ao caos em um único plano. No início, os responsáveis descobrem que oitocentos dólares foram “roubados” e, antes de checarem no chão dos escritórios, acusam os mais necessitados. O diretor acompanha Estela entrando na sala de Luis a partir de um lento e elegante travelling. Logo em seguida, para gerar tensão, os cortes se intensificam, o telefone toca desesperadamente e o tom das vozes muda. Alonso Ruizpalacios mostra um vasto repertório e abraça o cotidiano. “La Cocina” é um filme de diálogos e reações orgânicas, dominado por personagens revoltados e anestesiados. Nos intervalos, eles não discutem sobre política e racismo. Nesse sentido, o roteiro merece elogios por não sabotar a obra, compreendendo que risadas, conversas casuais e brincadeiras infantis fazem parte de um cotidiano árduo. “Como Deus planejou”, afirma um funcionário latino sobre as mulheres americanas. Esse é um exemplos dos vários diálogos naturais, responsáveis por nos colocar ao lado daquelas pessoas. Em outra situação, os personagens começam a recitar palavrões em espanhol, gargalhando enquanto trabalham. Max, um dos poucos nativos, fica em primeiro plano. O barulho é potencializado pelo design de som a ponto de o escutarmos cortando uma carne. É o estudo de uma psique irritada e preconceituosa. Dentro de um ambiente limitado, o diretor se preocupa com cada um, transitando entre risos e brigas. Max não suporta escutar outra língua, vê os colegas como seres inferiores, insetos que invadiram seu reino e clamam por igualdade. As estações na cozinha definem o significado de multiculturalismo. “Pizza”, “salada” e “carne” são códigos para diferentes etnias e raças. Estamos diante de pessoas com histórias, traumas, famílias e pensamentos diferentes e é exatamente isso que torna a cozinha um polo rico. Claro, para que os pedidos estejam prontos, todos precisam funcionar como um time, um relógio suíço com os ponteiros a pleno vapor. Os sonhos existem e diferem personalidades, todavia, são praticamente inviáveis. O que eles têm está naquela cozinha, na descontração diária e na confiança conquistada gradualmente.

O roteiro também desenvolve uma trama paralela com os personagens Pedro e Julia, que está grávida. Ela quer abortar, tem suas razões, algumas misteriosas, outras já conhecidas – o peso e a dor de carregar um filho por meses sem saber se conseguirá sustentá-lo. Ele, em contrapartida, enxerga na paternidade a chance de se reaproximar dos pais e de estabelecer um relacionamento com Julia no México. Pedro é explosivo, impulsivo, honesto e passional. A ideia do Greencard pode até passar por sua cabeça, porém está longe de ser o seu mote de vida. Ruizpalacios salienta o romance através de planos fechados nos quais os corpos se abraçam e os rostos se colam. A química é notável, está presente no arroto que precede risos e um beijo, nas discussões que terminam bem e na intensa cena no frigorífico. O azul, apesar de estar ligado à melancolia em torno do casal, tem a função de colorir uma sequência “onírica”. O cineasta mexicano encanta pela capacidade de conceber quadros delicados e estonteantes, como, por exemplo, aquele em que o aquário separa os dois. A culinária não é exatamente exaltada ou destacada, a não ser na sequência em que Pedro prepara um sanduíche especial para Julia. Ruizpalacios, a fim de reafirmar a afeição do protagonista pela moça, adota uma abordagem suave e utiliza planos-detalhe, ressaltando seu total cuidado. Pedro não se sente confortável falando outra língua, tem dores de cabeça e o amor é um dos escapes para tamanho vazio. A cozinha é praticamente uma família, o que inclui afeto e crises. No momento de maior lotação no restaurante, o diretor compõe um mosaico inigualável sobre essa relação paradoxal e intensa a partir de um dos mais ambiciosos planos sequências que já assisti. A magnitude do trabalho é explorada, assim como o caos, descontração, relações, rivalidade e companheirismo. Antes de Julia chegar com os pedidos, o cineasta vai de uma movimentação de câmera agitada para uma mais tranquila, contrapondo a loucura na cozinha e a tranquilidade do salão, que também enerva os funcionários com as reclamações de alguns clientes. Quando ela retorna, a cozinha está alagada e a fumaça atingiu o topo. É o tipo de tensão que só se atinge visualmente, com a audácia e a coragem de Ruizpalacios, que prova ser um mestre em desenvolver múltiplos acontecimentos em um espaço – seu filme é literalmente isso. O design de som é preponderante na fomentação de uma atmosfera nebulosa e crescente – o registrador é diabólico.

No fim, a câmera circula pelos rostos dos funcionários, após serem questionados pelo chefe. Os imigrantes cabisbaixos e desesperançosos reagem feito um filho sem resposta – a diferença é que eles, na verdade, as têm -, enquanto os americanos mantêm uma postura impositiva. Os imigrantes sabem que não serão legalizados e que estão a um passo da deportação; a normalização da dor está no silêncio.

A fotografia em preto e branco, além de deslumbrante, conversa com a situação explicitada.

A direção de arte trabalha brilhantemente as fases do filme, transmitindo cenicamente o que os personagens estão sentindo ou sintetizando situações em si.

Rooney Mara, como de costume, está excelente, no entanto, o grande destaque é Raúl Briones, que expressa uma gama imensa de emoções em sua poderosa composição corporal. Seu rosto é algo a ser admirado – o homem sensível e o garoto imaturo. O que falar do desfecho? É a explosão de um protagonista complexo e sonhador.

“La Cocina” é uma belíssima obra sobre o que não vemos – aqueles que estão no andar de baixo e seguem lutando.

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