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Don Johnston é um homem de meia idade impassível e monótono que vive em um estado quase vegetativo. Do lado de fora, o sol e a natureza contrastam com sua escura residência, na qual passa os dias sentado no sofá. Jarmusch repete um enquadramento específico algumas vezes, sendo o momento mais marcante, aquele em que o protagonista, pouco expressivo, bebe champanhe, escuta música e observa suas flores murchas na absoluta escuridão. O plano aberto ressalta a solidão do personagem e o cineasta tem um vasto repertório para enfatizar tal condição.

Seu vizinho, Winston, vive em uma casa consideravelmente menos luxuosa e expressivamente mais contagiante. As cores vivas, as crianças brincando, os espaços abertos e até a bagunça fazem parte da concepção de família harmoniosa, algo que Don desconhece. Ele está sempre com roupas esportivas, o que denota uma certa decadência e o seu natural cansaço em relação a tudo. Jarmusch o enquadra de costas e não temos dúvidas: estamos diante de um sujeito absolutamente vazio.

O bizarro, no entanto, é que Don é um galanteador, famoso por seduzir belas mulheres. No início do filme, Sherry, interpretada por Julie Delpy, o abandona, afirmando que deseja algo a mais, quem sabe, uma família.

“Eu pareço sua amante e você nem é casado”.

Como um homem tão modorrento chama a atenção de tantas mulheres? Sua facilidade em atraí-las se contrapõe com a dificuldade de manter um relacionamento duradouro. O protagonista tem as armas para o primeiro passo, porém, sua falta de energia, em algum momento, afasta suas companheiras.

Imerso em um cotidiano aborrecido, do qual não faz o menor esforço para melhorar, Don é surpreendido com uma carta de uma de suas amantes, dizendo que ele tem um filho que fugiu de casa e que, muito provavelmente, foi procurar o pai. Sua reação blasé, em comparação ao êxtase de Winston, que, além de querer ajudar o amigo a se encontrar, adora brincar de detetive, é engraçadíssima. O protagonista é literalmente obrigado pelo vizinho a embarcar numa jornada ao passado, visitando antigas namoradas. Mesmo não demonstrando entusiasmo, fica evidente que Don tem algum interesse nessa viagem. Ele não quer mais ser visto como um “Don Juan”, tem noção de que essa fase já passou e enxerga na possível paternidade uma oportunidade de melhorar, de construir algo importante. Talvez eu esteja errado e a única vontade do protagonista seja escapar da monotonia absoluta.

A carta não assinada obriga Winston a fisgar pistas, sendo, as principais, a cor rosa e uma máquina de escrever. Tudo que Don deve fazer é entrar nas casas, conversar e “conferir”.

Em um ônibus, duas adolescentes comentam sobre a beleza de um jovem sentado no banco de trás. Don escuta a conversa e se depara com o reflexo de si mesmo. Nesse curto vislumbre, temos ideia de seu efeito perante as moças. Ele olha para o garoto como se fosse um espelho antigo – as características estão ali, mas não batem com a atual situação.

Laura, vivida por Sharon Stone, é a primeira felizarda. Viúva, ela se anima em rever o velho Don. Os porta-retratos reforçam algo importante, que todas as mulheres, por mais distintas que sejam, têm em comum: construíram uma história e viveram algo importante em suas vidas.

Dora, estabelecida em seu trabalho e casada, é pega de surpresa. Ela claramente não gosta da visita, sente que o passado entrou em sua casa sem permissão, trazendo à tona momentos dos quais, hoje, tem somente vergonha. Don representa a imaturidade que se esvaiu com a idade. No jantar – o marido se chama Ron -, Jarmusch escancara o desconforto a partir da posição do protagonista na mesa. Ele senta na cabeceira, feito um intruso, enquanto o casal fica frente a frente.

Entre os encontros, literalmente nada acontece – a montagem frisa isso através de fades. A repetitiva trilha sonora etíope, a princípio, evoca mistério, conversando com a busca pela “mãe de seu filho”, entretanto, depois se torna exclusivamente enfadonha.

Os longos e silenciosos planos nos colocam na pele do protagonista, assim como a exposição do “ritual” das exaustivas viagens. Jarmusch é um autor e não se preocupa em tirar o espectador de sua zona de conforto. Seu filme é sobre um homem tedioso que embarca numa viagem tediosa, logo, se em algum momento ficamos entediados, é um sinal de que Jarmusch atingiu seu objetivo.

A fotografia passa a adotar tons azulados, salientando o desconforto de Don, que reencontra mulheres que estiveram ao seu lado e, atualmente, parecem outras pessoas. Elas evoluíram, ele ficou para trás. Os óculos escuros marcam o estilo de uma época e sua atual falta de personalidade – a preguiça de se expor.

Jessica Lange e Tilda Swinton são, cada uma à sua maneira, enfáticas. A segunda, inclusive, apela para a agressão física. Aquelas mulheres não precisam mais de um Don Juan, muito menos de um que não foi um bom parceiro. Bill Murray é um dos atores que melhor esconde emoções e a escolha de Jarmusch por ele é absolutamente perfeita. Aparentemente imune a sentimentos, Don sente o peso de seu saldo negativo.

Murray distingue, brilhantemente, apatia e depressão, adicionando toques de cinismo ao personagem. O encontro mais tocante é justamente com a única falecida. Ele deixa as flores no túmulo e se escora numa árvore. Os olhos marejados são a maior prova do quão sutil é a interpretação de Murray, especialista em dar vida a sujeitos frios e introspectivos.

O uso recorrente da câmera subjetiva é fundamental na busca pelas “pistas”. Qualquer objeto rosa é identificado pelo protagonista, cujo olhar nos direciona a dúvidas que se intensificam no desfecho.

A imagem do sangue em seu rosto, misturado com as rosas, simboliza a trajetória – poucas respostas, a conclusão de uma existência vazia e a afabilidade retrucada com rispidez.

A câmera subjetiva nos leva ao hipotético filho. O diálogo derradeiro é espetacular – orgânico e manipulativo. Não importa, pela primeira vez, Don se sentia relevante, dava conselhos e ajudava alguém. Sua fala é paternal, vem de seu coração, um lugar pouco explorado até então.

A opção por girar a câmera em torno de Don sintetiza maravilhosamente a sensação dele e a do espectador ao subir dos créditos.

“Broken Flowers” é um filme espetacular. A obra prima que define a parceria entre Jarmusch e Murray.

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