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Lars inicia o filme olhando pela janela e cobrindo sua boca com uma manta, gesto que denota uma profunda angústia. Karin, sua cunhada, insiste para que ele tome café da manhã em sua casa. O protagonista vai à igreja, é super educado, no entanto, passa a impressão contrária quando Margo, sua colega de trabalho, o cumprimenta. Seu comportamento extrapola a timidez, Lars sai correndo como se tivesse avistado um bandido ou um urso pardo.

Aos vinte e sete anos, o protagonista é incapaz de manter contato visual, se contorce o tempo todo, pisca incessantemente e realiza movimentos mínimos, a fim de permanecer invisível. Jantar com Gus e Karin é um verdadeiro desafio – seus ossos doem e sua pele arde. Lars vive na garagem de seu irmão, um ambiente pequeno, escuro e frio, perfeitamente adequado para suas aspirações fantasmagóricas. Ele diz que está tudo bem e não mente, pois nunca experimentou outra sensação, logo, não diferencia a felicidade da tristeza.

No trabalho, o protagonista segue falando num tom de voz baixíssimo e também se esconde quando Margo aparece. Seus trejeitos soam infantis, estranhos a ponto de torná-lo um fascinante objeto de “estudo”. Um de seus colegas cita um site no qual você cria a “mulher ideal”, uma boneca anatomicamente realista.

Seis semanas se passam e a tal encomenda chega. Lars avisa ao irmão e a cunhada de que tem uma companhia, os levando a euforia, acreditando que ele finalmente saiu do claustrofóbico cubículo. Um corte abrupto nos direciona aos rostos incrédulos de Gus e Karin, abismados, não exatamente com a namorada de Lars, mas pelo fato dele levar aquilo demasiadamente a sério. Bianca – esse é o nome da “moça” – é real, caso contrário, não geraria uma revolução no protagonista, que, pela primeira vez, se comunica de maneira articulada e sorri. Ele precisava de alguém mais “tímido” para se soltar? Sem dúvida, porém esse não é o ponto central abordado pelo roteiro. Sua mãe morreu durante o seu parto e seu pai, a partir dali, se transformou numa figura deprimida, impotente e incapaz de criar dois garotos. Assim que pode, Gus se mudou, estabeleceu uma vida para si, deixando o irmão para trás, que passou anos na escuridão proporcionada pelo pobre pai.

Sua fobia social é o resultado natural de uma “inexistência”, uma pessoa que nunca foi propriamente amada. O toque humano provoca uma espécie de choque térmico e o diálogo constante, ainda que ele tenha muito a dizer, não é nada confortável. Bianca é uma solução inteligente e inconsciente. O protagonista não planeja etapas, seus olhos estão voltados para o agora, para a boneca. A necessidade por companhia é inata aos humanos. Lars não sabe disso, todavia, seu corpo e alguma parte de seu cérebro reconhecem essa lacuna, o “obrigando” a tomar atitudes, até então, inconcebíveis. Seu arco é em direção a uma outra conexão, uma que exija mais esforço e menos amarras, e Bianca é a peça chave para que ele atinja o potencial escondido ali.

Em determinado momento, Lars admite que usa várias camadas de roupa para evitar o contato corpo a corpo. Nesse sentido, é importante ressaltar a cor dos suéteres – cinza -, que conversa diretamente com sua introspecção. O protagonista finge que Bianca é real? Não. Ele sofre com delírios? Talvez, mas, novamente, esse não é o ponto. Gus e Karin ficam assustados, acreditam na possibilidade de uma internação e são incapazes de enxergar a situação pela ótica mais limpa. O casal decide levá-lo a uma psicóloga, com a desculpa que se trata de uma médica geral para checar se está tudo bem com Bianca. A Doutora Berman é a única personagem sensível o suficiente para compreender o caso e também é essencial no arco do protagonista, sendo sua

confidente.

O roteiro é cuidadoso, evita que o filme se torne uma piada, alcançando a proeza de ser, simultaneamente, um estudo sobre solidão e empatia; triste e belo. Claro, existem momentos engraçados, no entanto, partem de situações específicas e bem trabalhadas.

Gus e Karin se preocupam com o julgamento alheio e se deparam com uma comunidade harmoniosa e solidária. Todos, sem exceção, embarcam no universo de Lars, integrando Bianca na sociedade, a colocando para realizar trabalho voluntário, cortar o cabelo, fazer compras, entre outras coisas. Ela recebe flores na igreja e é exaltada por sua beleza. A boneca, de alguma forma, potencializa a bondade e a simpatia de pessoas naturalmente gentis. Por que eles fazem tudo isso? Simplesmente porque amam Lars, que não precisava temer por abraços e conversas casuais.

O roteiro também abre espaço para outros personagens, como, por exemplo, Gus, que se dá conta do quão ausente e injusto foi com o irmão e se reavalia enquanto adulto e futuro pai. Sabemos que, ao perguntar a ele quando o homem realmente atinge a maturidade, Lars está evoluindo.

O protagonista observa Margo a uma certa distância e fica com ciúme ao vê-la com o namorado. Quando seu ursinho é “enforcado” por um colega de trabalho e ela chora, Lars decide “ser um homem”, indo até lá, dizendo as coisas certas e tirando a corda do pescoço do bicho de pelúcia – uma metáfora para a sua própria condição.

Bianca não aceitou seu pedido de casamento? Está em estado gravíssimo?

Mesmo inconsciente, essa é a forma que o protagonista encontra para seguir adiante e quem sabe se relacionar com Margo. Não é como se Bianca fosse jogada no lixo, pelo contrário, há cenas surpreendentemente melancólicas em que vemos um homem destroçado pelo luto. Lars planeja tudo e chora – sua mente é realmente incrível. Quanto mais próxima da morte Bianca chega, mais a fotografia investe em tons frios, a ponto de uma névoa tomar conta da cidade. Na cena no lago, ela aparece pálida e sem maquiagem – uma sacada genial para humanizá-la. A ambulância e o hospital local também entram no jogo. Isso não seria inverossímil? Não, pois o diretor Craig Gillespie apresenta a cidade como um espaço pequeno, empático, pacato e bucólico.

No fim, o sol aparece e Lars veste um suéter rosa – o efeito da boneca, sua nova fase. Se a trajetória de Bianca termina numa igreja repleta de pessoas, podemos afirmar que este filme valoriza o poder da fé.

A direção de arte trabalha bem os espaços, conferindo vida própria a cada um. O quarto de Bianca é rosa, salientando sua natureza fantasiosa e o carinho que Lars nutre pela falecida mãe, afinal, era lá que ela dormia. Existe uma ligação entre as duas: uma o colocou no mundo, a outra o fez sorrir.

Na festa, o protagonista fica de costas para uma parede vermelha, cor que reforça o seu amor pela namorada e o inicial pavor que sente naquela ocasião.

A trilha sonora encapsula brilhantemente a aura sensível, melancólica e bela do filme.

Craig Gillespie pouco se intromete, seu grande mérito é deixar os personagens observarem a genuína afeição de Lars por Bianca.

Ryan Gosling oferece a performance de sua carreira e, sem dúvida alguma, uma das melhores deste século. Sua composição é precisa e delicada, nunca se torna caricata. Os trejeitos estabelecidos pelo ator são tão orgânicos, que acabam ressoando no espectador, afetado por tamanha fobia social. Seus gestos, ações e entonação vocal não são apenas convincentes, “tiram” Lars da tela, o transformando numa figura real e relacionável. A cena em que Gosling dança sozinho é a demonstração perfeita de que o protagonista vive em uma rotação única e pessoal.

“Lars And The Real Girl” é uma obra prima.

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