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De costas, num quarto escuro, “o motorista” enfatiza quão metódico é. Ele não participa do assalto e fica disponível para a fuga por apenas cinco minutos, findo o qual ele se desobriga do “contrato” – rigor profissional. O protagonista mal dorme, é um lobo solitário, acostumado com a selva que percorre com seu carro. Logo de cara, Nicolas Winding Refn apresenta o motorista em ação, ressaltando não apenas as manobras para despistar os policiais, mas os lugares estratégicos em que se esconde. Os gestos mínimos, o rosto imutável e a tranquilidade ao sair do carro são marcas de um sujeito atormentado e inegavelmente cool.

Nitidamente inspirado em “Le Samouraï”, de Jean-Pierre Melville, e “Thief”, de Michael Mann, “Drive” é um estudo de personagem minimalista e complexo, calcado numa narrativa econômica e na excepcional performance de Ryan Gosling.

O motorista e Irene, sua vizinha, não precisam conversar para estabelecerem uma profunda conexão; basta fecharem suas portas juntamente. Quando ele entra no apartamento da moça, sua imagem é refletida no espelho em que a foto de Standard, marido de Irene e atual presidiário, fica guardada. Naquele quadro estão os dois homens de sua vida e é através de sutilezas dessa magnitude que Winding Refn movimenta o filme. O protagonista a observa pela janela, é o único rastro de humanidade que permeia sua existência banal e perigosa.

Em uma simples carona, a vida do motorista ganha um novo sentido. Nada é dito, mas sabemos, graças a ensolarada fotografia e os genuínos sorrisos dos personagens, que algo de especial está sendo construído. A música “A Real Hero” é fundamental na fomentação de tal atmosfera e ao traduzir exatamente o que o motorista está pensando. Ele quer ser um humano comum, quer ser um herói cotidiano e talvez consiga. Os passeios noturnos, o plano-detalhe das mãos entrelaçadas e a relação praticamente paternal que o protagonista estabelece com Benicio, filho de Irene, são pontos a serem destacados.

Além de pilotar em fugas criminosas, nosso amigo trabalha numa oficina e como dublê em filmes de ação. Shannon, seu chefe e único colega, apesar de ganancioso, é uma figura agradável. Ele pensa grande, quer colocar o protagonista para participar de corridas na Stock Car. Para tal, precisa convencer Bernie, um parceiro de longa data, a investir na ideia. Sem pretensões e finalmente feliz, o protagonista aceita qualquer proposta que o tire das ruas e das amarras que ainda o prendem a marginais.

Decidido, ele sofre um baque quando Standard é solto e volta para casa, o obrigando a retornar ao escuro apartamento. Aprendemos com Jef Costello, de “Le Samouraï”, e Frank, de “Thief”, que certas pessoas não têm escapatória, estão destinadas a uma existência solitária e deprimente. O roteiro sabe disso, confunde a trajetória do motorista com a dos personagens citados acima, ao mesmo tempo em que confecciona uma jornada imensamente pessoal. O silêncio, a luz vermelha que penetra o seu rosto e o de Irene salientam a dor do afastamento. Ainda que se encontrem outras vezes, o brilho da cena da carona se foi. Em determinado momento, Standard se coloca entre os dois, simbolizando a barreira que impede uma aproximação desejada.

O ex-presidiário é atormentado por dívidas pendentes e é brutalmente agredido. Se não juntar a quantia ordenada, sua esposa e filho serão mortos. O protagonista se encheu de esperança, foi alegre por uns dias e, por mais que seu habitual vazio tenha retornado, ele não consegue esconder o que sente, não consegue ver Irene em perigo e ficar indiferente. O crime é a sua sina, sua vocação, não há para onde correr. Juntos, os dois planejam um assalto que resulta no inesperado assassinato de Standard. Aquilo era uma armação? Quem estava por trás do “verdadeiro golpe”? 

Em suas primeiras aparições, Bernie e Nino estão em um restaurante particular, inteiramente vermelho, que escancara, antes de abrirem a boca, suas índoles. Eles personificam o perigo, o mal que habita qualquer sociedade e que controla, sorrateiramente, um sistema inteiro. Nino é espalhafatoso, gosta de ostentar seu poder e o efeito doentio que tem perante pobres coitados; em contrapartida, Bernie se mantém discreto, aberto a negócios, simpático com quem está disposto a cooperar e assustadoramente frio quando precisa agir. Na esfera convencional, Bernie seria o chefão, o gângster que enche o espectador de medo e surge como principal ameaça para o protagonista.

O dinheiro roubado por Standard “era”, na verdade, deles, e o motorista, que havia conhecido o paraíso, se vê imerso no inferno, sem saída.

A cada capanga que o nosso amigo mata, mais distante de Irene e Benicio ele fica – o sangue de suas vítimas que suja seu rosto e sua jaqueta salienta essa situação. Bernie vai atrás de todos os envolvidos no “jogo”, não quer nenhum vestígio solto e o roteiro prepara o terreno até o aguardado duelo. Winding Refn não alivia na brutalidade, optando por uma violência gráfica e intensa, conversando diretamente com o estado do protagonista, que luta contra fantasmas que dominam sua existência e pelo seu amor.

O cineasta utiliza a câmera lenta para pontuar extremos: o horror ao vermos uma barra de ferro penetrando o pescoço de alguém e a beleza de um momento genuinamente esperançoso.

Naturalmente escuro, por tratar de figuras que habitam o submundo, o filme fica gradualmente mais soturno. Os filtros esverdeados e avermelhados vão ao encontro da abordagem melancólica e estilizada de Winding Refn.

“Eu poderia ir com vocês. Cuidar de vocês”. O protagonista sabe que isso não é verdade, sabe que não pode arruinar a vida das pessoas dessa forma.

A montagem é inteligente, varia entre fusões suaves e cortes que acentuam a ação. No encontro do motorista com Bernie, em vez de uma estrutura tradicional, Winding Refn opta por “fragmentar” a sequência, indo da conversa no restaurante para os dois caminhando na rua; de expressões de pessoas que têm noção do que está prestes a acontecer e simplesmente aceitam seus destinos para o embate físico. Esse artifício confere um efeito dramático ao momento e indica impecavelmente como aquelas mentes funcionam.

O longo close up do rosto do protagonista nos leva a crer que ele está morto e, de certa forma, está – mais um exemplo de que a imagem e os gestos são infinitamente mais potentes que exposições desnecessárias.

A estrada vazia, a caminho do nada…

A trilha sonora é preponderante para a ambientação, servindo também de homenagem ao grupo Tangerine Dream, que participou de vários projetos na década de oitenta, incluindo “Thief” e “Manhunter”. O mesmo vale para as excelentes músicas “A Real Hero” e “Nightcall”.

Albert Brooks, mestre da comédia, está assustador e ameaçador na pele de Bernie. Sua frieza é impressionante, principalmente nas cenas em que mata alguém. “Não se preocupe, acabou”, diz o gângster ao cortar o pulso de um personagem.

Ryan Gosling atingiu o status de astro aqui, filme que também fomentou sua persona minimalista e cool – a jaqueta e o palito na boca viraram marcas registradas do ator. Não se trata apenas de “estilo”, o protagonista é um ser abandonado e ambíguo – não à toa, seu rosto, muitas vezes, é dividido por sombras – que detesta exatamente aquilo que define sua existência: a violência. Ele ama alguém, mas não consegue se afastar dos demônios que encarnou durante anos. Com pouco, Gosling oferece uma performance assombrosa.

“Drive” rendeu a Nicolas Winding Refn o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes, em 2011.

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