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Aos treze anos, toda a bruxa precisa sair de casa. É um rito de passagem para a vida adulta, um momento de encarar uma nova realidade. A trilha sonora delicada e a presença marcante da natureza são suficientes para entendermos a personalidade de Kiki, que, após escutar o noticiário do tempo, prepara as malas para sua aguardada aventura.

A inocência infantil é contagiante, nos faz acreditar por um instante que a protagonista está a caminho de um lugar qualquer e que tudo ficará bem. A presença dos amigos, o cuidado da mãe e o forte abraço que recebe do pai ressaltam quão amada Kiki é em sua pequena e acolhedora ilha.

Chegando na nova cidade, as pessoas ficam boquiabertas com o seu peculiar meio de transporte, no entanto, logo se assustam quando ela quase causa um acidente. Adorável, a protagonista rapidamente se estabelece no sótão de uma padaria. Osono, a dona do estabelecimento, além de se encantar com a pureza da garota, se sensibiliza com a sua difícil situação. Grata e a fim de retribuir o favor, Kiki se oferece para fazer entregas com a ajuda de sua vassoura mágica e de seu gato preto.

Miyazaki e sua equipe têm um cuidado enorme com a caracterização dos espaços. Diferentemente da ilha, que se limitava a um ambiente familiar, a nova cidade é grande e bastante verossímil. As ruas principais são preenchidas por prédios altos e coloridos, carros e bondes. Todavia, são as casas que ganham um destaque maior, dominadas por um interior rico nos mais variados sentidos. A senhora que prepara uma torta de aniversário para sua neta vive em uma residência com esculturas, quadros e detalhes em dourado. A arquitetura suntuosa, que poderia colocar a idosa num pedestal, serve apenas para salientar a condição financeira de boa parte dos habitantes daquela região. Ela é doce e simpática, um dos pontos de equilíbrio para o amadurecimento de Kiki.Digo isso, pois, em sequência, a nossa bruxinha se depara com a tal neta, que reage ao presente da avó com um desgosto lastimável. São as relações e as abruptas mudanças de humor que ditam o arco da protagonista.

Miyazaki não está interessado numa trama, sua abordagem é episódica, acompanha Kiki em sua trajetória no novo território, assumindo responsabilidades e interagindo com os seres humanos que atravessam o seu cotidiano. O saldo é positivo, já que, além de Osono e da senhora, Kiki conhece Ursula, que a ajuda com uma das encomendas e depois a convida para espairecer num momento de instabilidade mental, e Tombo, que, assim que a avista na vassoura, se apaixona e a persegue de maneiras um tanto destrambelhadas. “Eu te achava meio palhaço”, relata a jovem, após perceber que ele era, na verdade, gentil e amigável. O receio de se relacionar com um garoto é brilhantemente retratado na expressividade da protagonista, que, a princípio, evita qualquer tipo de contato. A sequência em que eles andam de bicicleta é fundamental para estabelecer um importante laço, por cultivar o clima agradável da obra e introduzir o ciúme a uma cabeça em formação. Sua irritação é boba, porém justa devido a pouca idade – essa é a fase de valorizar tudo.

Voltando a direção de arte, é no mínimo curioso o fato da casa de Ursula, onde Kiki se cura de uma forte melancolia, ser disparadamente a mais “ordinária” do filme e ficar na floresta, afastada da cidade – como uma visita a querida ilha. É lá que a bruxinha aprende a se valorizar e a enxergar a própria beleza, exposta num desenho da amiga. A combinação de cores fornece uma poderosa harmonia ao filme e, nesse sentido, o figurino de Kiki não poderia ser mais apropriado. O vestido preto e o laço vermelho exalam simplicidade e doçura.

Diante de tantas crises emocionais, envolvendo ciúmes, saudades dos pais, o medo de decepcionar sua chefe, os contrastes humanos e a natureza intrínseca a toda garota nessa idade, a protagonista perde seus poderes. A metáfora para seu esgotamento e insegurança é muito bem trabalhada, sendo essencial para prendê-la a superfície, refletir um pouco e chegar a conclusão de que está tudo certo. Os planos abertos em seu quarto escuro reforçam essa sensação de solidão e claustrofobia.

Em sua estrutura particular, a obra apresenta situações memoráveis, responsáveis pelo humor e pelo drama. Jiji, o gato afetuoso, é obrigado a passar momentos tensos ao lado de um cão, graças a um imprevisto na hora de entregar um pedido; a chuva torrencial impede Kiki de chegar a tempo numa festa e a prende na cama, resfriada.
O jeito desatento que a bruxinha atravessa a rua pela primeira vez diz muito sobre sua natureza e experiências até então, e o brilho nos seus olhos ao ser convidada para a tal festa é visível. Sutilezas assim não costumam ser exaltadas em animação e Miyazaki, mesmo quando não trabalha com universos ultra fantasiosos e criaturas mágicas, nos impressiona com seu nível de detalhamento.

As tomadas aéreas são absolutamente deslumbrantes, dão uma perspectiva única ao espectador, que se vê na altura da bruxinha, e ratificam o fascínio do realizador pelo céu. Não à toa, o vento, outro elemento marcante em sua carreira, assume a função de libertador.

Eu sei que é repetitivo, mas literalmente todos os quadros aqui poderiam ser exibidos em um museu. Os traços de Miyazaki são pictóricos, não deixam dúvida de que esse é o trabalho de um homem apaixonado pelo que faz.
A trilha sonora e as escolhas musicais são irretocáveis, cumprem uma função narrativa essencial e deliciam o espectador.

Kiki’s Delivery Service mescla perfeitamente encantamento com a árdua missão da jovem em pleno processo de amadurecimento. Talvez não seja tão filosófico quanto “Porco Rosso” e “Princess Mononoke”, entretanto, é igualmente poderoso e icônico. Outra obra prima que coloca Hayao Miyazaki no hall dos diretores mais humanos da história do cinema.

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