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Dixon Steele é um roteirista hollywoodiano. Logo no início, Nicholas Ray questiona a condição do escritor, que não recebia crédito por seu trabalho. “Um dia farei algo bom”, ele diz, reforçando o desprezo que tem pelo seu emprego, baseado em adaptar livros ruins. Estúdios e produtores são contra a criatividade, gostam de vender baldes de pipoca e acabam amarrando os artistas.

Dixon é uma figura caótica e brutal, capaz de causar brigas em sinais e em bares por motivos banais. Seu forte temperamento é conhecido por todos, que sabem como lidar com o protagonista. Sem opção, ele aceita uma proposta e pede para a recepcionista do restaurante que frequenta ir a sua casa para resumir o livro que nunca leria.

Na manhã seguinte, Dixon é acordado por Burb, um detetive amigo seu, no entanto, não se trata de uma visita casual: a tal moça foi encontrada morta na beira de uma estrada. O protagonista é o suspeito óbvio, todavia, para a sua surpresa, surge um álibi perfeito: sua vizinha, Laurel Gray, que viu os dois chegando e a recepcionista saindo.

Dixon Steele é uma das figuras mais fascinantes da história do cinema americano. Seu jeito debochado e blasé disfarçam a enorme dor que sente. Sua agressividade é um sintoma da solidão que domina sua vida. Em determinada cena, o xerife lê todas as queixas que já foram prestadas contra ele e não são poucas…

O protagonista conhece muitas pessoas, todas envolvidas no meio cinematográfico, todas interesseiras e desinteressantes. O telefone toca e Dixon não atende, afinal, ainda não encontrou aquela que busca e nem nutre esperanças. Seus roteiros são acompanhados de boas doses de álcool, para esquecer o que está fazendo e o que sua vazia existência preparou para o dia seguinte. Noites em claro são como beber água. Dixon é um animal noturno, selvagem e autodestrutivo. Repentinamente, Laurel aparece em seu caminho e, além de salvá-lo, é nitidamente diferente das outras – o ama genuinamente, sem pedir nada em troca.

“Levei muito tempo procurando alguém. Não sabia quem era. Nunca a tinha visto”.

Ela é a peça chave para sua regeneração física e emocional, sendo sua secretária e grande paixão. Dixon nunca foi tão produtivo e, pela primeira vez, o vemos sem o terno, apenas com uma camisa que deixa seus braços à mostra – liberdade, felicidade. Ao seu lado, o protagonista não precisa beber, gosta de quem é e ela responde reciprocamente: “não quero nada, só você”. Contudo, por falta de opções, pelo histórico e pela forma despreocupada que reage à notícia da morte da recepcionista, Dixon ainda é o principal suspeito e os detetives ficam em cima de Laurel, que se irrita com as insinuações baratas. Ela é pressionada por pessoas que escutaram histórias horríveis envolvendo o protagonista, mas não é convencida.

A situação muda em um piquenique na praia, no qual a esposa de Burb revela, sem querer, que Laurel esteve na delegacia. Furioso, Dixon sai descontrolado e dirige como um insano. Ray utiliza um plano-detalhe do hodômetro e intensifica os movimentos de câmera, colocando a moça numa posição desconfortável, até então, desconhecida.

O contra-plongée enfatiza o olhar enraivecido do protagonista, que espanca um sujeito com quem discutiu no trânsito. Essa cena impressiona não apenas pela brutalidade, mas pelo fato de Laurel evitar uma tragédia. Ao perceber que estava prestes a matar o rapaz, Dixon se enxerga como um animal e não sente orgulho, pelo contrário, entretanto, seu instinto é incontrolável.

A partir daí, Laurel é dominada por sentimentos contraditórios. Sua paixão, gradativamente, se esvai, dando espaço a um medo palpável. Nesse sentido, a inserção de imagens sobrepostas e o uso de voice-overs são precisos ao “expandirem” o seu atordoamento e confusão mental. Ela deixa de tratar Dixon com aquela doçura, começa a achar que ele matou a recepcionista e teme pela própria vida. Em contrapartida, o protagonista, sabendo que passou do ponto, se expõe cada vez mais, com declarações, presentes e um cuidado verdadeiro. Em direções opostas, o casal intensifica suas emoções, a ponto de Dixon notar que sua amada está distante e receosa. Ele não é um monstro e se um dia agiu feito um, foi pela falta daquilo que passou a ter. O protagonista é agressivo na praia e dá indícios de paranoia justamente por não querer perdê-la, não querer voltar ao abismo que se acostumou a habitar. Dixon não é um assassino, mas os relatos alheios e a cena que presenciou mudaram a percepção de Laurel, a única, além do espectador, a acreditar em sua bondade.

É triste dizer isso, mas a verdade é que ele se sabotou novamente e tem consciência de que seu temperamento, infelizmente, nunca o abandonará.

O desfecho é enérgico e melancólico; belo e desesperançoso.

“Eu nasci quando ela me beijou. Eu morri quando ela me deixou. Eu vivi algumas semanas enquanto ela me amou”. Esse icônico e poético fragmento resume a obra e a trajetória de ambos os personagens – um ciclo.

Nicholas Ray era um apreciador do rosto humano. Seus filmes estavam ali, nas pequenas e delicadas expressões faciais dos personagens. Se o amor que eles nutrem é palpável graças ao uso de close ups, o mesmo pode ser dito para outros sentimentos, como, por exemplo, a fúria, o desespero, o arrependimento, a tristeza e o pavor.

Dixon fica quase sempre sozinho ou distante dos outros no quadro. Ray muda essa abordagem após a introdução de Laurel – corpos próximos, muitas vezes colados e esse contato físico é fundamental, algo novo para o protagonista. Assim como fez com os close ups, o cineasta dá diferentes conotações a um único artifício. A proximidade passa a ressaltar o profundo afeto de Dixon – que se mistura com obsessão, o que é normal – e o constante medo de Laurel, que deseja amá-lo novamente, mas simplesmente não consegue. Ray trabalhava muito bem a posição dos personagens no quadro. Na delegacia, vemos a moça em primeiro plano e o roteirista no fundo. Ela fica minuciosamente parada de costas para o espaço vazio no sofá, onde ele está sentado – é claro, Laurel ocupará aquele lugar na vida de Dixon.

Em outro momento, quando o protagonista a pede em casamento, ela também fica em primeiro plano e seu rosto denota uma fobia paralisante, enquanto ele quer seguir adiante com o relacionamento – somente nós vemos a situação por inteiro, as diferentes reações.

Falando no crescente medo de Laurel, Ray não poderia ser mais certeiro ao colocá-la atrás de uma porta no clímax – palavras não são mais poderosas do que um corpo escondido.

Há uma rima especialmente magistral que me encantou. No primeiro beijo, Dixon segura o seu pescoço, no caso, um gesto amoroso. No terceiro ato, quando Laurel é “desmascarada”, ele a enforca – movimento idêntico, conotações e forças opostas. Vale ressaltar que a posição do casal nas duas cenas é idêntica – o roteirista em cima e a moça em baixo. O início e o fim…

O que Ray quer dizer com isso? Sutilmente, como o mestre que é, o cineasta caracteriza o protagonista. Dixon é sensível e está disposto a se apaixonar, no entanto, seu temperamento brutal pode levá-lo ao buraco.

A fotografia é espetacular, responsável por manter uma aura Noir e por diferenciar as fases vividas por Dixon. A escuridão dá espaço a claridade, a noite é onde o animal se esconde e o dia representa a sua felicidade.

Humphrey Bogart oferece uma das melhores e mais complexas performances de todos os tempos. Seu cinismo e humor autodepreciativo são eficientes e marcam um homem que não se leva a sério. Seus ataques de fúria são visíveis e assustadores, perfeitamente elaborados, desde o princípio até a violência em seu estado gráfico. Bogart é igualmente convincente na parte romântica, demonstrando suas emoções de uma forma delicada e direta. Ele não parece desesperado, mas está e só expõe essa condição quando nota que as coisas saíram do trilho. Ao mesmo tempo em que entendemos os motivos de Laurel e vemos Dixon como uma figura impositiva e amedrontadora, não podemos dizer que não criamos uma enorme empatia pelo protagonista, que só quer ser feliz e amado. Bogart compõe um personagem trágico, enigmático, terrivelmente falho e relacionável.

“In A Lonely Place” é a obra definitiva da carreira de Nicholas Ray.

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