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“Heat” é o resultado da parceria entre um dos melhores cineastas americanos contemporâneos e os dois intérpretes mais icônicos da “Nova Hollywood”. Errado não poderia dar, mas, sinceramente, eu não esperava algo tão impactante, belo e complexo.

Neil McCauley é o líder de uma quadrilha altamente preparada e organizada, praticamente infalível. Eles sabem exatamente o que devem fazer, o que é ressaltado através de movimentos ensaiados e da montagem, responsável por correlaciona-los. Waingro, o novo integrante, age por impulso, matando um policial e, em vez de se desesperar, o protagonista decide executar os outros oficiais. O roteiro foge de qualquer imagem glamourizada e irreal de Neil. O fato de ser um mestre do crime conversa diretamente com sua personalidade taciturna, introspectiva e solitária. Ao ser abordado por Eady em um Diner, Neil é curto e grosso, não entende porque alguém se interessaria por ele. Sutilmente, Michael Mann dá indícios de sua genialidade, iniciando a cena com enquadramentos que mostram as costas dos personagens. Quando o protagonista nota o quão estúpido foi, pede desculpas e se apresenta, o cineasta movimenta a câmera para que vejamos os dois de frente – Neil se abriu, se libertou de antigas amarras. Inseguro e vulnerável, o protagonista não tem coragem de admitir sua natureza para Eady, que, em contrapartida, assume sua solidão. Os planos fechados, as luzes da soturna Los Angeles e a trilha sonora metalicamente romântica salientam aquela aproximação. Neil não é puramente um bandido, é também um homem sensível, preso a uma obsessão degradante que vai além do autocontrole e da preservação. O protagonista vive e existe pela ação, pelo frenesi do crime e por estar diariamente na mira da morte. Sabemos que Eady era uma peça que faltava em seu quebra cabeça, todavia, também temos noção de que, em algum momento, essa relação se estremecerá.

Vincent Hanna é o tenente do Departamento policial de Los Angeles. Assim que bate o olho no perspicaz plano de Neil, ele passa a admirá-lo imensamente. O personagem já se casou três vezes e Justine, sua atual esposa, não suporta o descaso do marido, que passa mais tempo atrás de criminosos do que em casa. Vincent se adaptou à selva que tenta domar, está sempre em movimento, entorpecido pelo ofício que o afasta de pessoas que mereciam uma atenção maior. Sua obsessão é proporcional a de Neil, o que torna o jogo de gato e rato muito mais intenso e fascinante. Estamos diante de caras que não sabem fazer outra coisa, que respiram e se alimentam de suas vocações. Se Vincent prender alguém, sua preocupação não será com o descanso ou com a situação de Justine, mas com o próximo caso. Essa não é a história sobre um policial e um bandido, é sobre uma relação de extrema dependência. Sem Neil, Vincent é apenas um homem errático e egoísta; sem Vincent, Neil entraria e sairia de bancos como um monge, seria obrigado a abandonar a adrenalina que o mantém vivo. Mann, genialmente, não coloca os dois gigantes para interagirem diversas vezes – ao todo, contracenam três vezes -, reforçando o fato de serem almas gêmeas em lados opostos da lei. Enquanto Neil age silenciosamente, raramente altera a expressão facial e a entonação vocal, vai direto ao ponto e é frio a ponto de matar sem qualquer “pausa dramática”, Vincent dá a impressão de estar, diariamente, impregnado de adrenalina. Mesmo quando “desacelera”, é de surpreender a todos com gestos bruscos e explosões inusitadas , como, por exemplo, na icônica cena em que confronta uma potencial fonte.

Mann e o montador formam paralelismos magníficos, ressaltando essa conexão invisível. Neil se diverte com seu grupo em um restaurante, Vincent também; os locais nos quais se relacionam com suas mulheres e mesmo os diálogos, no âmbito de cada casal, se assemelham; o número de pessoas em cada time é similar, assim como a capacitação técnica; eles vão aos mesmos lugares em momentos distintos.

Quando o protagonista e Chris, seu grande parceiro, estão analisando as possibilidades para o próximo assalto, Vincent e sua equipe os observam. Neil nota algo estranho e encara a câmera de segurança. Ainda que fisicamente afastados, o cineasta estabelece um forte intimismo a partir de olhares penetrantes.

É interessante também a maneira como Mann descarta a ideia de “vilões” e “heróis”. Logo após ameaçar Van Zant pelo telefone, que se vê em uma sala completamente escura, denotando um pavor palpável, Neil se reúne com sua quadrilha no festivo e harmonioso jantar citado acima. Não existem santos ou monstros, somente homens amaldiçoados que, apesar de terem um “objetivo maior” em suas vidas, transitam organicamente entre espaços e situações comuns.

“Heat” contém a sequência de tiroteio mais impressionante da história do cinema. Iniciando com o cuidado da quadrilha para manter a discrição através de ângulos baixos, close ups e planos subjetivos, Mann adere ao caos assim que é dada a largada no assalto ao banco. A montagem paralela confere uma crescente tensão – um está chegando, o outro indo embora. Enquanto Vincent alerta as pessoas e faz de tudo para expor a situação, Neil caminha tranquilamente – a trilha sonora minimalista vai ao encontro de seu plano. O caos imagético e sonoro é espetacular, ao mesmo tempo em que denuncia a casualidade da tragédia urbana americana – famílias estão ali, em plena zona de guerra. O design de som é um show à parte, os disparos pareciam estar acontecendo na minha vizinhança. Carros perfurados, sangue e mortes marcam essa longuíssima sequência, que praticamente introduz um elemento que, a partir daqui, se torna fundamental: a câmera na mão, responsável por refletir o atordoamento dos personagens e a instabilidade de algo meticulosamente planejado.

Outro momento em que Mann exibe brilhantemente a violência de Los Angeles é aquela na qual Waingro mata uma prostituta. Quando ele puxa o cabelo da vítima, o cineasta corta para um plano-detalhe de uma garrafa de cerveja sendo “decapitada” – continuidade entre os planos – num bar dominado por um filtro vermelho.

O trabalho de fotografia e direção de arte são exemplares. Os tons frios não são uma “obrigação” do gênero, são artifícios minuciosamente pensados para tornarem o estudo dos personagens mais rico e imergir o espectador na realidade de seres que trabalham na surdina. Sempre que Neil está planejando algo com sua equipe, ele se encontra num terreno baldio, cercado ou num beco completamente escuro. O protagonista e Vincent são figuras solitárias, melancólicas e dignas de pena, logo, um universo mergulhado em tons acinzentados, escuros e, majoritariamente, azulados, é necessário. As sombras suscitam um certo mistério, além de conferirem ao bandido, por exemplo, uma aparência ameaçadora na primeira cena do filme. A casa do tenente é uma bagunça, assumindo a condição de seu casamento e a sua inexistente vida pessoal; já a de Neil, é vazia, sem nenhum móvel, o que salienta sua natureza errante e discreta – impossível de se relacionar. Os figurinos seguem a mesma lógica visual.

No tão aguardado encontro, eles conversam como amigos, caras normais em um Diner, se abrem, falam sobre suas obsessões e dificuldades em admitir uma existência padrão. Não é apenas uma convenção entre seres que precisam manter um determinado comportamento para alcançarem seus objetivos. Neil e Vincent reconhecem o talento alheio, se admiram, se respeitam imensamente e sabem que dependem um do outro. Mann evita planos-conjunto, enquadrando os atores sozinhos, deixando o “melhor” para o final. É como se olhassem diretamente para um espelho, estão atrás de si mesmos.

O roteiro é tão incrível, que eu mal citei Chris, interpretado pelo excelente Val Kilmer. Irresponsável, impulsivo e imaturo, ele é uma espécie de filho para Neil, seu protegido máximo. Em uma das centenas de cenas espetaculares, a polícia está com Charlene, sua esposa, com quem divide uma vida conturbada. Ela teria todos os motivos para entregá-lo, porém, em vez disso, faz um singelo gesto, destacado por um plano-detalhe, o salvando da prisão ou de uma possível morte. Existe uma história por trás daqueles olhares, um amor incompreendido pelo espectador. Novamente, a montagem eleva a tensão, nos levando a sala tomada por um silêncio absoluto, onde Vincent espera por uma resposta.

Os últimos vinte minutos são especialmente geniais. Neil e Eady têm a chance de fugir para outro continente, o caminho está aberto. Em uma fração de segundo, Robert De Niro sintetiza seu personagem. O rosto sério expressa uma felicidade tão palpável que emociona, todavia, rapidamente se convence de que precisa se auto sabotar.

Mann, que havia demonstrado a astúcia de Vincent e sua capacidade em compreender a mente dos bandidos na cena em que ele percebe que está sendo observado – o contra-plongée o coloca “acima” dos colegas -, corre na contramão da multidão, nos levando a um dos desfechos mais enervantes que já vi. No meio de um mar de perspectivas e ações coreografadas, assumimos a visão e a sensação de impotência de Eady. Ela está no carro, à espera, sem poder fazer nada – nós também.

A mudança de close ups para planos subjetivos gera uma proposital confusão visual no espectador, que não sabe exatamente onde os personagens estão, nem quem está mais próximo do outro. A sombra é decisiva…

O plongée é um ângulo significativo, simboliza perfeitamente a relação entre Neil e Vincent, de mãos dadas, em posições opostas.

Al Pacino e Robert De Niro oferecem performances a serem estudadas, do mesmo nível de outras que lhes renderam prêmios e a fama que os acompanha até hoje. As nuances foram mencionadas, mas não há crítica que faça jus ao talento desses intérpretes.

“Heat” é uma obra prima incontestável, o Magnum Opus de Michael Mann.

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