Skip to main content

Enquanto realiza o trabalho braçal, Teresa escuta instrumentos musicais e monta, através de vozes, do som da roupa no tanque e da faca na cozinha, sua “orquestra particular” – abruptamente interrompida. A música é o fio que conduz as meninas do filme a uma existência minimamente suportável. As paredes descascadas e os ambientes decadentes refletem o caráter dos líderes do convento que abriga órfãs. Afastada de qualquer convívio social, passando a maior parte do tempo num galpão, Teresa é uma “escrava” com “ouvido musical”. Seu talento se limitava a instrumentos fabricados por ela e objetos quaisquer; logo, quando encontra um piano forte escondido exibe uma felicidade radiante. A protagonista não conhece as teclas e os acordes, todavia, em poucos minutos está tocando uma bela composição própria. As órfãs fazem parte da orquestra regida pelo Padre, que é um completo farsante. O convento é convidado para tocar na cerimônia em Veneza para o novo Papa. A notícia é ótima, no entanto, por motivos óbvios, o regente fica nervoso. Ele nunca compôs nada, apenas segue as tradições – leia-se: a negação da autoralidade e a repressão feminina – exigidas em 1800, contratando compositores fantasmas para darem vida aos “seus espetáculos”. As órfãs têm sonhos simples, algumas são otimistas, outras nem tanto. Dito isso, elas se respeitam e se amam como irmãs, afinal, em um universo machista e opressivo, são as únicas companhias disponíveis. A dura existência fortalece laços e fragiliza almas encantadoras. O amor mexe com seus corações, porém vai além, sendo uma das raras oportunidades de sair do convento e ser livre. Lucia, a mais romântica, vive um romance proibido e, a cada encontro, aumenta a expectativa de ter sua mão pedida em casamento. Quando a ilusão vem à tona, em uma carta seca e insensível, ela comete um ato drástico. A diretora inicia a cena com um plano fechado, realçando a ansiedade da jovem, indo para um plano aberto após a subversão da expectativa.

Teresa pratica o piano durante as madrugadas e, em um momento que ressalta a sua adoração por música, a câmera gira em torno do instrumento e Vicario mostra as teclas saltando através de planos-detalhe. A protagonista, tratada como um rato, não se relaciona com as órfãs, que escutam melodias, acreditam ser o Padre e se surpreendem não apenas com a presença de Teresa, mas com a originalidade de suas composições. Há um outro fato interessante aqui: até então, ela era considerada muda, condição que “magicamente” se transforma quando ela é provocada por Lucia, que desaprova a ideia de aderir ao estilo dançante e inovador da “rejeitada”. As outras não conseguem mentir para si, Teresa toca algo adorável e real. A música não pode partir do piloto automático, não deve ser uma obrigação, mas uma fonte de inspiração, de manifestação de sentimentos complexos, entalados em gargantas machucadas. Lucia propõe uma disputa, que só ratifica o que mencionei. Ela opta pelo clássico, aquilo que não tem face ou energia e a montagem pontua a “vitória” da protagonista a partir de cortes rápidos, responsáveis pela progressão da história e por criar humor graças às reações das outras órfãs. O espaço onde ensaiam é iluminado por velas, refletindo a criatividade e o estado de espírito das jovens; em contrapartida, a sala do Padre é escura, salientando sua mentalidade retrógrada e falta de inspiração. Estamos falando de um homem que organiza matrimônios, colocando meninas à disposição de senhores poderosos. Bettina, a mais negativa, é inspirada por Teresa, cantando seus dilemas e dores em mais uma cena que valoriza a principal qualidade de “Glória!”: seu encantamento. Este não é um filme perfeito, o roteiro falha ao não explorar profundamente a maldade no convento e tem seus buracos. No entanto, é difícil não ficar com um sorriso no rosto enquanto acompanhamos a cumplicidade e amizade dessas adoráveis mulheres. A sequência na qual consolam Lucia com uma bela canção sintetiza a obra: é como um abraço caloroso. Ao apresentar um arranjo alheio, a diretora utiliza um contra-plongée para mostrar quão dominante o Padre se considera, ao mesmo tempo em que o ridiculariza. Desesperado, ele é obrigado a aceitar a composição das moças – claro que a autoria ficaria em sigilo. A música em “Gloria!” é responsável por dar uma esperança palpável e unir jovens que, muito provavelmente, estariam em silêncio, nos seus cantos. O desfecho dividirá o espectador, mas é, sem dúvida alguma, uma celebração à ambição feminina. A direção de arte concebe ambientes sem vida, sujos e com uma arquitetura rígida/clássica – a Igreja é o melhor exemplo. A música delas que, por sinal, é lindíssima, não poderia ser um contraste melhor – a decadência e o progresso. O quarto das órfãs é pequeno, conversa com suas possibilidades e a opressão que sofrem diariamente – os figurinos padronizados acentuam essa sensação. Teresa vive praticamente em um chiqueiro e a porta, constantemente fechada, evidencia sua condição de prisioneira. A fotografia em tons azulados cumpre um papel importante, mantendo uma atmosfera melancólica.

Paolo Rossi se destaca no papel do Padre canalha e sem talento, conferindo humor ao filme. As garotas, apesar de não se destacarem individualmente, carregam a obra, formando um núcleo poderoso, charmoso e encantador.

“Gloria!” é um filme cujos defeitos pouco importam.

O que você achou deste conteúdo?

Média da classificação / 5. Número de votos:

Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!