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Após a brilhante e pouco valorizada “trilogia da frieza”, Michael Haneke realizou “Funny Games”, provavelmente seu filme mais provocativo e genial. Podemos dizer que o mundo se deu conta de quem ele era em 1997.

Não entrarei (pelo menos pretendo) em terreno de spoilers. Uma família rica vai até a sua casa de campo e é abordada por dois jovens que se vestem identicamente. A pretexto de pedir ovo para o almoço dos vizinhos, eles fazem os três – pai, mãe e filho – de reféns, praticando deliberadamente uma série de torturas, físicas e psicológicas.

Entre tantas “brincadeiras”, a principal envolve a vida da família, que tem doze horas para sobreviver.

De forma direta e simples, este é o filme. Por que algo tão gratuito e brutal é tão aclamado e sensacional assim? Existem várias maneiras de responder essa pergunta. Primeiro, hei de enaltecer o trabalho de Michael Haneke, um dos raros diretores que, ainda que não pareça interessado em alcançar qualquer status, nunca chegou perto de realizar algo “simplesmente bom”. Tudo o que esse sujeito toca vira uma obra prima e “Funny Games” representa o seu auge atrás das câmeras. Optando por planos longuíssimos, Haneke não só aumenta a tensão, mas extrai dos atores atuações mais expressivas, torna o filme mais “verossímil” e nos coloca praticamente ao lado da família, ou seja, a brutalidade e a dor são extremamente palpáveis. No mesmo plano em que está tudo bem, o diretor subverte o tom da obra, transformando uma mera gentileza – os ovos para o almoço – em algo desconfortável, a partir de excelentes diálogos e da minuciosa posição dos personagens na tela.

No possível momento mais violento do filme, Haneke não mostra a ação em si – o que se repete e se prova uma escolha cruel e acertada de sua parte -, nem gera um atordoamento com sua câmera, a deixa estática, contemplando o enorme sofrimento de Georg e Anna. O silêncio e a falta de movimentos são dilacerantes. A mãe começa a andar, tenta achar algo para se desamarrar, enquanto o pai segue imóvel. O plano segue, sem nenhum corte, durando aproximadamente dez minutos.

Invariavelmente, sobretudo no início, Haneke faz questão de colocar a família de costas e Paul e Peter de frente, ressaltando quem são os donos da situação. Nesse sentido, a posição dos personagens dentro do quadro – em pé/sentados – também é fundamental. Em meio a planos abertos, médios e de conjunto, o diretor utiliza close ups apenas quando algo muito sério acontece ou quando um sentimento potente precisa ser enfatizado, podendo também ser um indicativo de um perigo iminente. 

A única cena de perseguição é conduzida com uma rara maestria. Haneke coloca uma criança numa situação desesperadora, movimenta sua câmera sutilmente, dando informações fundamentais sobre a psicopatia dos antagonistas e demora a mostrar Paul. Apenas escutamos sua voz, o que esquenta a cena até o seu eficiente desfecho.

A câmera parece emular o comportamento de Georg e Anna, ficando cada vez mais quieta, respeitando o pânico e o estado atônito do casal.

Como você reagiria se dois jovens educados, vestidos de branco – cor que denota paz -, entrassem em seu apartamento pedindo por algo? Eu sei o que faria e é por esse motivo que, além de icônicos, o figurino de ambos – o all star é um belo complemento – é tão espetacular. Não há nenhum indício de perigo, nenhum alerta e essa abertura dá espaço para o interminável show de sadismo.

Paul é o líder e sua poderosa retórica se baseia no sarcasmo e na mentira. Sua entonação é suave, porém suas palavras são cortantes e ele sabe exatamente o que dizer, diálogo após diálogo. No fim, não fazemos ideia de quem Paul é, mas temos convicção de sua maldade e de sua capacidade de enganar seres humanos “ingênuos”.

Em contrapartida, Peter cumpre a função de ajudante, sendo constantemente humilhado pelo parceiro, se limitando a fazer reclamações dignas de um garoto de oito anos.

“Funny Games” é eficaz em sua premissa e cumpre brilhantemente sua função como um filme de horror/suspense, elevado por uma direção memorável, um roteiro fascinante e uma montagem discreta, porém eficiente ao manter a tensão lá em cima.

Mas deve haver algo a mais, algo que realmente coloque “Funny Games” numa posição de obra prima inigualável, brigando até pelo posto de melhor filme da década de noventa.

O principal intuito de Haneke é questionar o espectador e, provocador nato que é, faz isso de uma forma jamais vista. Por que ficamos tão intrigados, boquiabertos e raramente piscamos durante os cento e dez minutos? Simplesmente porque gostamos de ver os outros sofrendo, somos aficionados por violência, ainda mais se ela for gratuita. Podemos desmentir essa afirmação e perceberemos que o diretor desperta o sadismo dentro de nós. Não torcemos para a família morrer, muito pelo contrário, mas queremos que se machuquem, somente assim teremos o “final desejado”. Haneke é genial a ponto de recorrer a um velho artifício, que é o uso de um sutil plano detalhe de um objeto que, na maioria dos casos, será importante no final dos filmes. Essa quebra da expectativa é um dos grandes baratos de “Funny Games”.

Ele questiona o conteúdo televisivo, a forma sensacionalista que a violência é noticiada, reforçando sua crítica na cena em que a TV fica suja de sangue. Outro alvo do diretor é a indústria cinematográfica, que acostumou o espectador a tratar a brutalidade como algo normal, a glamourizando. “Funny Games” é o dedo do meio de Haneke para tudo isso, especialmente aos Estados Unidos, não à toa, dirigiu um remake idêntico ao original – quadro por quadro -, pois sabia que o povo americano não assistiria um filme legendado. 

Quem conhece a carreira de Michael Haneke sabia o que aconteceria no final, no entanto, os desavisados podem acabar se traumatizando e ele adoraria que isso acontecesse.

Uma questão que me chamou bastante atenção foi a constante quebra da quarta parede, que conversa diretamente com o que já foi discutido.

Frases como: “assim não teríamos prazer.”, “queremos oferecer algo à audiência.” e “você quer um final real, com um desfecho plausível, certo?” suscitam uma pergunta interessante. Por que torcemos por alguém nesse ou em qualquer outro filme? Paul fala conosco, pisca para câmera e, em determinado momento, pega o controle remoto e reinicia uma cena. Nada é real e, mesmo assim, disponibilizamos nossas emoções e criamos um certo laço com a família. Esse é o cinema. Aceitem que tudo é uma farsa, saibam que existem algumas câmeras e uma equipe inteira no set e que até o espectador pode ser um personagem. Tendo consciência disso, a sensação que fica, sinceramente, é de que não existe expressão artística mais formidável e completa. O cinema não é a realidade – pode até ser -, é um espelho, um meio de refletir, de se auto avaliar e de apreciar o trabalho de mestres como Michael Haneke.

Gostaria apenas de enaltecer as excepcionais performances de Ulrich Mühe e Susanne Lothar. Ambos se entregam de corpo e alma e, gradativamente, sentimos o peso daquela experiência aterrorizante no semblante, no olhar e na entonação dos atores.

Arno Frisch, que já havia demonstrado um enorme talento em “Benny’s Video”, marca o seu nome na história do cinema com uma das interpretações mais carismáticas, frias e sádicas de todos os tempos.

“Funny Games” é uma maravilha e aquele final…melhor não falar nada.

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