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Os irmãos conversam, correm pelo jardim ensolarado e a câmera lenta ratifica a proximidade entre os dois. O pai chega do trabalho e não questiona uma nota ruim: “eu também não era bom em matemática”. A casa é pequena e aconchegante – a harmonia na mesa de jantar é notável.

As coisas mudam quando o pai acorda os filhos para avisá-los que um anjo o visitou. Deus o escolheu, ele será o protetor da Terra, responsável por destruir os demônios que visam ao fim do mundo. Adam, o mais novo, fica encantado, enquanto Fenton, o protagonista, tem certeza de que aquilo não é verdade.
O primogênito quer acordar desse estranho sonho, no entanto, o pesadelo se torna real. Um feixe de luz divino direciona o pai a um celeiro abandonado, onde encontra a sua arma, meticulosamente posicionada.

Ele recebe a lista e é aí que Fenton realmente se desespera. Não são nomes mitológicos, mas de pessoas comuns, supostamente, “demônios disfarçados”.

Estreante na direção, Bill Paxton utiliza diferentes estratégias para distanciar o protagonista dos outros personagens, o posicionando em primeiro plano ou no fundo e colocando Adam no mesmo quadro. A família feliz se partiu, a palavra de Deus é a única que interessa e nem todos pensam igual. Na medida em que a lista é preenchida, uma carnificina se inicia. Amoroso e carinhoso, o pai não pensa duas vezes antes de decapitar um estranho, tocando em seus braços antes para “enxergar” seus pecados. Paxton usa a câmera na mão para gerar uma espécie de atordoamento subjetivo.

Adam sente a mesma coisa; em contrapartida, Fenton fica apenas incomodado e assustado. Ele quer contar para a polícia, mas não consegue; ama o pai, porém odeia sua fé cega. O descaso do protagonista perante a “missão” obriga o patriarca a pressioná-lo. Na casa dos Meiks, não acreditar em Deus é quase um crime, uma falha de caráter. Os demônios são destruídos, assim como a estabilidade de Fenton, que se vê diante de fanáticos, de um pai que o castiga com tarefas desumanas e o prende num calabouço por semanas, sem comida, à base somente de um copo d’água por dia.

O sol dá lugar à escuridão e o jardim florido, citado no início do texto, se transforma num cemitério. A sombra ocupa um papel importante na narrativa, conferindo ambiguidade aos personagens e tons macabros à história.

O filme começa numa delegacia, onde Fenton, adulto, afirma saber quem é o assassino por trás do caso “Mão de Deus”, procurado há anos pelo FBI. Doyle, o agente principal, não acredita no protagonista, que relata todos os acontecimentos traumáticos de sua infância. Adam sucedeu o pai, é o homem procurado pela polícia. Tudo que escrevi inicialmente é narrado através de flashbacks. A escolha poderia ser um verdadeiro tiro no pé, todavia, Fenton surge tão “drenado”, que ficamos em dúvida se ele é uma ameaça ou um pobre coitado. Gradativamente, o peso de seu passado conversa com sua expressão abatida e desesperançosa.

A grade da viatura, marcada em seu rosto, está relacionada a algo ocultado pelo protagonista ou a prisão que sua própria existência se tornou por nunca ter dito nada sobre os assassinatos?

As fusões formam rimas visuais entre os diferentes espaços temporais e estabelecem uma elegante continuidade. A montagem também opera para potencializar a tensão, já cultivada pelo diretor, cuja predileção por planos fechados é notada desde o início.

Paxton exibe um domínio fascinante sobre a linguagem cinematográfica, usando artifícios e enquadramentos significativos sem chamar a atenção para si. Em determinado momento, o pai tem uma visão e o plongée ressalta a sua absoluta devoção, quase uma intimidade com seu superior. Quando mata uma de suas vítimas, o contra-plongée indica que ele se sente poderoso, encarregado pelo divino para tirar a vida das pessoas. No final, Paxton aumenta seu repertório, optando pelo dolly zoom para gerar dúvida em um personagem – não posso ir além.

O jardim passa a ser dominado pela névoa e pela fumaça, dando um aspecto sombrio a um ambiente que exalava pureza.

O fanatismo religioso é um tema comum em obras de horror. Aqui, ele é responsável por dividir uma família e transformar um homem simpático num assassino. Quem pensa diferente é rejeitado e mal visto. O que o patriarca carrega não é uma missão, mas uma doença altamente contagiosa.

“Frailty” é assustador em diferentes níveis, mas atinge seu ápice quando temos dúvida se Fenton está seguro perto do pai.

Por que ele aceitou a tarefa? Sua vida era pacata e deprimente? Ser um “super-herói” é excitante? Não, suas palavras, por mais insanas que soem, partem de um sujeito que acredita naquilo, que se considera um servo de Deus.

Tudo bem, consideremos por um instante que a visão era real e que o pai foi de fato instruído a livrar o mundo de seu fim. Não seria Deus o vilão? Os números se alteram, mas o resultado da equação não. Ele destruiu um lar harmonioso, obrigou um homem admirável a virar um monstro, induziu Adam a seguir os mesmos passos e afetou a psique de Fenton.

Os “demônios”, nesse caso, seriam pessoas que cometeram crimes perversos. Qual a diferença do pai para eles? Aumentar a criminalidade é a melhor forma de evitá-la? Trabalhar para o “todo poderoso” significa abdicar de sonhos, prazeres cotidianos e da própria personalidade? Vale a pena? Aqueles que não tem fé, também são demônios? Fenton é um demônio?

O roteiro provoca essas e outras indagações, deixando claro apenas que o fanatismo é uma doença. Acreditar em Deus é algo, deixar de acreditar em si é outra – aí que reside o terror.

Nos minutos finais, há um plot twist impactante, que obriga o espectador a repensar o que assistiu. A princípio, achei um pouco exagerado, todavia, entendi o ponto dos realizadores.

Bill Paxton faz do pai uma figura carinhosa e tranquila, da qual sentimos pena por levar sua missão tão a sério. O ator nega obviedades, mesclando brilhantemente as qualidades do personagem com sua gradual psicopatia.

Matthew McConaughey oferece uma performance espetacular, deixando o espectador receoso, sem saber exatamente suas intenções. Fenton é difícil de ler e o ator carrega o peso do passado traumático e dos anos de silêncio em seu rosto.

“Frailty” é uma pérola do início da década de 2000, um filme que merece um reconhecimento maior.

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