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“Election” tem um dos melhores roteiros da década de noventa. Um filme que concilia, brilhantemente, estudo de personagem e sátira política.

A eleição para o conselho estudantil está prestes a acontecer e a única candidata é Tracy Flick, uma jovem insuportável e narcisista. O mediador do conselho é Jim McAllister, professor da escola, que detesta a aluna por ter se relacionado com seu colega e melhor amigo, culminando em sua demissão, divórcio e derrocada absoluta. Todavia, seu ódio pela garota não para por aí, já que ele nota a sua descarada ambição. Tracy faz parte de variados clubes, puxa o saco dos superiores e é falsamente simpática. Jim é o protagonista, no entanto, Alexander Payne traz à tona diferentes perspectivas, criando um painel revelador e comicamente impecável. Antes de focar em um personagem, o diretor utiliza freeze frames, seguidos de voice overs, quebrando a expectativa, dando fluidez e frescor ao filme – a narrativa é deliciosa.

Todos, em menor ou maior grau, dizem verdades. Logo após escutarmos Jim, Tracy é quem se abre, afirmando que sente pena do professor, que assume um cotidiano modorrento, encapsulado em seu figurino repetido e pouco atraente. O protagonista, apesar de dizer que ama o que faz, desfruta de um casamento sem graça, não consegue ter filhos e, antes de dormir, vai ao porão assistir pornô. O espectador é cúmplice dos personagens, o único ali capaz de julgá-los por inteiro. Criamos amigos e inimigos, observamos e entendemos que, no fundo, todos fazem parte de um sistema imundo – essa é a força da estrutura de Payne.

Jim não suporta ver a garota que levanta o dedo a cada pergunta ser a presidente do conselho, então tem uma ideia genial. Somente uma pessoa pode rivalizar com Tracy e vencê-la nas “urnas”: Paul Metzler, um atleta ingênuo, simpático e imbecilizado. Ele acabou de quebrar a perna, logo, o protagonista enxerga a eleição como uma oportunidade de levantar o astral do aluno, que cai em sua retórica facilmente.

A trilha sonora explora o caos e a raiva dos personagens, surgindo em momentos oportunos, como, por exemplo, quando Tracy percebe que terá que se esforçar para ganhar. Eis que surge uma outra candidata: Tammy, irmã de Paul. Após Lisa, sua namorada, lhe dar um pé na bunda, admitindo que não é “sapatão”, e se relacionar justamente com Paul, a caçula da família Metzler decide adicionar um tempero extra na eleição. A sequência em que ela relata seus encontros apaixonados com Lisa é engraçadíssima, graças ao uso de câmera lenta, split screen e de uma trilha delicada – artifícios que pontuam perfeitamente a idealização romântica de Tammy.

Os discursos colocam cada candidato em seu canto. Tracy promete coisas, abusa de uma retórica empática, profissional e forte – liguem a TV em época de programas eleitorais e verão falas idênticas. Paul vai pelo mesmo caminho, a diferença é que mal consegue disfarçar que está lendo algo que fez um tremendo esforço para escrever ou que deram para ele.

São exemplos do populismo em diferentes e igualmente constrangedoras facetas.

Conhecemos Tracy, ela é egoísta, se considera melhor que os outros, seu objetivo é o poder, nada mais. Suas palavras advém de uma mente inteligente e persuasiva.

Paul, em contrapartida, é o fantoche que aparece no lugar do verdadeiro “Presidente” – vamos levar para a esfera global. Ele é adorado pelas massas, mas é tão superficial e imbecil quanto uma porta. Paul é uma manobra para a vitória, como vários políticos por aí.

A base do discurso de Tammy é a única honesta: “não farei nada”. Aqui entra outra questão fundamental na sátira de Payne: a escola é um enorme vácuo. Peguemos os personagens de “Election”, por exemplo: os citados são caricaturas e os demais são imaturos ou se levam demasiadamente a sério. Que tipo de ambiente é esse, que forma seres superficiais e despreparados para o mundo real? O professor dá um teste surpresa para passar rapidinho em um motel; o diretor xinga a aluna e a suspende, não fazendo a menor ideia do que a palavra educação significa, lhe concedendo, na verdade, três dias de férias; o outro superior se relaciona com Tracy e encara como algo casual.

Estamos diante do caos, de um meio que camufla o seu vazio com regras e aulas que pouco importam. Em seu segundo filme, Alexander Payne confeccionou um retrato duro e cômico sobre a decadência das instituições. Seu foco, como o título enfatiza, é a política, que ganha contornos cada vez mais bizarros e ironicamente críveis. Tracy, ao perceber a possível perda, arranca todos os cartazes. Ela se faz de vítima, é pega de surpresa quando Tammy “admite” a culpa e ainda recrimina a pobre coitada. Os planos que, gradativamente, se fecham nos rostos de Jim e Tracy salientam o ódio que nutrem e a intensa troca de farpas.

Para completar, o protagonista é informado que sua rival venceu por um voto e decide recontar, jogando, discretamente, os papéis que davam a presidência à Tracy no lixo. Fraude eleitoral, escândalo de corrupção, linchamento público e demissão – tudo seria evitado se o “inocente” Paul tivesse votado em si mesmo, não em sua oponente.

Payne tem um carinho enorme por Jim. Até chegarmos ao seu ato infâme e depois a sua volta por cima, acompanhamos a derrocada do homem comum e estável. Seu casamento não é lá essas coisas e Linda, ex mulher de seu amigo recém demitido, vira a sua cabeça. O professor previsível e regrado decide viver sua própria aventura, o que fica evidente nos planos-detalhe do corpo da moça, inteiramente observada por ele. A picada de abelha no olho simboliza sua tragédia, uma bola de neve que parece interminável. Não podemos ser moralistas a ponto de condenar Jim. O protagonista se manteve na linha por anos, foi o marido compreensível e o professor dedicado, um homem padronizado. Ao aceitar seus impulsos carnais, o que vemos não é da ordem natural, não à toa, ao perder a esposa e Linda, Payne utiliza um plongée – Deus o freou, o impediu de viver essa aventura, o punindo da forma mais severa possível. O homem comum não pode sair de seu papel pré-estabelecido. O cineasta usa ângulos holandeses quando Jim frauda a eleição, reforçando, simultaneamente, a imundice do sistema político e o arco digno de pena do protagonista. A montagem é inventiva, dita o ritmo do filme, se valendo de inserções originais e de um timing cômico infalível. Os cortes frenéticos na sequência em que Jim é pego no crime – indo de rosto em rosto – são extremamente eficientes, têm um efeito punitivo.

Reese Witherspoon merece elogios por transformar Tracy numa figura insuportável. Sua composição é eficiente, indo de sua irritante voz ao trabalho corporal.  

Matthew Broderick, o eterno Ferris Bueller, oferece uma performance excelente, repleta de carisma e reações impagáveis. Existe o Jim público e o que se abre para o espectador. O ator diferencia e, inevitavelmente, concilia essas personas com maestria.

“Election” é uma obra realmente especial.

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