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Paul Hunham é um professor rígido e pouco amigável. Ele adora distribuir notas vermelhas e utilizar seu poder para impor medo nos alunos, que o detestam. Na Barton Academy, um colégio interno, nem mesmo os colegas gostam do protagonista. Por ter reprovado o filho de um dos principais contribuidores da instituição, Paul é obrigado a passar as férias cuidando dos jovens que, por motivos particulares, ficarão na escola.

Ele é o tipo de educador que assobia ironicamente enquanto entrega provas importantes. Inegavelmente qualificado, não podemos dizer que Paul age corretamente ou que compreende a magnitude de seu cargo. Ele é “cruel” e se considera correto, mas a vida não é bem assim. A educação de excelência é louvável, no entanto, os adolescentes, seres em plena formação, necessitam de algo a mais, um calor humano que vai além de conhecimentos acadêmicos.

Ao reclamarem do frio, os “rejeitados” recebem a seguinte resposta: “Os romanos se banhavam no gelado Tibre. A adversidade constrói caráter”. Paul não consegue trazer nada para o contexto atual, suas analogias remetem a civilizações milenares e o seu fascínio pelos romanos é enfatizado inúmeras vezes.

Para o protagonista, os alunos são afortunados, irritantes e mimados, não à toa, ao acordá-los, se refere a eles como “preguiçosos fétidos”, no melhor estilo medieval. Mary, funcionária do colégio, enfrenta a dor por ter perdido seu filho. Mulher forte, ela é uma das responsáveis pelo arco de Paul e não deixa de ser uma inspiração, pela leveza e força que transmite. Seu quarto, decorado com uma enorme imagem de Martin Luther King, retratos do filho e do falecido marido, salienta sua nobre personalidade. Falando na direção de arte, os quartos brancos e as camas iguais reforçam a concepção de internato: não há espaço para individualidades, Paul coloca todos no mesmo saco.

Eis que o pai de um dos alunos convida o restante para esquiar. Os responsáveis são contactados e permitem a saída, menos os de Angus, completamente incomunicáveis.

Nosso trio está formado. Em determinado momento, Mary pergunta a Paul se ele já foi casado e sua resposta diz muito sobre o personagem: “Eu gosto de ficar sozinho”. Sua primeira reação, obviamente, é dar uma risada, e depois, ainda se compara a um monge. O diretor vai de planos fechados a um aberto, escancarando o silêncio e a solidão que assolam aquelas existências. A quantidade de whisky tomada por Paul não vai ao encontro dessa declaração. O protagonista mascara sua deprimente condição com a firmeza de um educador “dedicado”.

Seu sadismo se esvai na medida em que os adolescentes somem, sobrando, de fato, os únicos rejeitados.

Angus é um jovem inteligente e problemático, descrito pelo professor como “um pé no saco”. Sua mãe se casou com um sujeito rico e intragável, quer abandonar seu passado e isso inclui o filho, largado no internato. Quando ele rouba as chaves, imaginamos que fará algo absurdo, mas não, apenas toma sorvete e bebe vinho. Angus vive num mundo escuro e solitário, precisa de afeto, porém só encontra rancor e dor. Ele se senta em uma poltrona cuja cor é idêntica a de seu suéter. Detalhes assim enriquecem a narrativa e podem passar despercebidos – engolido pelo ambiente e por seus próprios pensamentos.

Sua relação com Paul talvez seja o ponto alto do cinema em 2023.

A corridinha do protagonista numa cena de perseguição que culmina em um ombro deslocado é sensacional – o trabalho corporal de Paul Giamatti merece um reconhecimento maior. A ociosidade do personagem está ali.

Alexander Payne não se “intromete” muito, deixa o espetáculo para os intérpretes, todavia, confere um humor sofisticado a partir de sutilezas como a rápida panorâmica que precede a longa correria.

No hospital, temos o primeiro momento de empatia mútua. Um livra a cara do outro em situações bem estabelecidas pelo brilhante roteiro, que obriga essas pessoas, de diferentes faixas etárias, a se respeitarem.

Em uma lanchonete, eles são atendidos por Lydia, que também trabalha na escola, e que nitidamente mexe com o coração do protagonista. Angus percebe a química e diz coisas condizentes com a sua idade – muito da comicidade está nesse contraste, evidenciado nos diálogos.

Paul não admite sentimentos, deve achar que se trata de uma fraqueza e que os romanos jamais se declarariam. As mulheres o intimidam, ressaltando sua profunda solidão e descolamento do mundo real. Não é um simples receio, mas uma fobia social – sua primeira constatação ao chegar na festa de Natal de Lydia é que a casa está cheia.

As peças, gradativamente, se encaixam, transformando o professor numa figura muito mais complexa e interessante do que imaginávamos.

O roteiro coloca o protagonista e Angus lado a lado, através de adversidades nas quais um ajuda o outro, entretanto, o grande mérito de David Hemingson – o autor – é expor as várias semelhanças entre os dois.

O garoto se interessa pela sobrinha da amiga de Paul, e Payne fecha o quadro para expor essa rara interação, que termina em um doce e surpreendente beijo. A montagem se prova inteligente ao colocar o protagonista numa situação similar a do aluno – reações similares e igualmente genuínas. Homens emotivos, trancados em suas gaiolas e que entendem a singularidade de gestos sutis. Não à toa, Paul muda de feição, justamente ao descobrir que Lydia tem um par – sua expressão é de completo vazio. Confuso e furioso, ele é indelicado com o rapaz e Mary o repreende. O professor, então, jeitoso que é, decide fazer uma ceia natalina, repensa suas atitudes e é gentil. Angus o convence a passar alguns dias em Boston. Existem três momentos especialmente significativos e bonitos aqui.

Em um museu, Paul leciona com sua peculiar inteligência, todavia, de uma forma mais tranquila, o que leva Angus a se manifestar, jogando em sua cara que todos o odeiam e que isso poderia mudar caso ele apresentasse esse cuidado na sala de aula, em vez da habitual rigidez. O protagonista, silenciosamente, acusa o golpe, mas não se irrita, pelo contrário, enxerga na fala do garoto um ato de empatia.

No hotel, Angus deixa um frasco cair no chão e Paul pega, percebendo que se trata de um antidepressivo. Ele pergunta o óbvio, devolve o remédio e não o julga. Segundos depois, abre sua bolsa e pega um frasco idêntico. Esse tipo de conexão é a alma de “The Holdovers”. Estamos diante de seres rejeitados, socialmente destrambelhados e mergulhados na melancolia. Palavras não são necessárias quando temos símbolos – no caso, o remédio – tão poderosos.

O mesmo vale para a cena em que Angus “foge” para visitar seu pai e Paul lhe concede essa honra, inclusive o acompanha. Payne utiliza o zoom out para criar humor em situações nas quais o protagonista perde seu aluno de vista.

Os dois chegam a um manicômio e Angus confirma o esperado: seu pai é um ser incomunicável. Seu único rastro de relação humana é praticamente um vegetal, muito por suas condutas destrutivas e agressivas. Paul não mente, não fala apenas para acolher e sua mensagem, no fundo, é sobre individualidade e o caminho que trilhamos: escolhemos quem queremos ser. Ele é a inspiração, o abraço que faltava a Angus, uma espécie de espelho de si mesmo. Os xingamentos, severos no primeiro ato, ganham uma conotação carinhosa: “seu cretino”. Os planos fechados e os figurinos de cores complementares – azul e vermelho – engrandecem a cena.

Há também momentos engraçadíssimos, como, por exemplo, aquele em que uma prostituta se aproxima de Paul, fazendo referência a algum doce e ele responde: “não, sou diabético”.

O desfecho faz jus ao arco dos personagens, únicos e relacionáveis em seus dilemas e dores pessoais.

A trilha sonora e as escolhas musicais conversam entre si, fomentando uma atmosfera suave.

Paul Giamatti oferece uma performance marcante, repleta de sarcasmo, cinismo, amargura e vulnerabilidade. O protagonista é engraçado e deprimente na mesma proporção e vê-lo caminhando em direção a lugares menos claustrofóbicos – literal e metaforicamente – é reconfortante. Se o tamanho de uma interpretação for medido pela transformação entre sua primeira e última aparição, é mais do que justo afirmar que esta é colossal.

Sua química com o estreante Dominic Sessa, que não se intimida perante Giamatti, é contagiante, eletrizante e adorável.

Tomado por uma fotografia fria e pela neve, “The Holdovers” é um filme que aquecerá o seu coração sem qualquer imposição.

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