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Paul Matthews é um pacato professor de biologia, que se esforça para ser um bom pai, porém suas filhas mal o escutam e Janet, sua mulher, apesar de não externalizar frustrações, já gostou mais do marido. A aparência comum ressalta quão esquecível e desinteressante o protagonista é. Paul deseja escrever um livro sobre a evolução das formigas, mas uma antiga colega está prestes a publicar um extenso estudo sobre o mesmo tema.

Repentinamente, seu cotidiano pragmático e frustrante sofre uma mudança radical: milhares de pessoas pelos Estados Unidos estão sonhando com Paul Matthews. Na medida em que os personagens detalham as “experiências”, percebemos um ponto de convergência: em todos os sonhos, o professor vê alguém precisando de ajuda e não faz nada, simplesmente anda de forma passiva e suave. A vazia caixa de entrada se transforma, lotada de mensagens empolgadas, inclusive de um canal de TV que quer entrevistar o “homem do momento”.

“Talvez deva parar e pensar antes de fazer algo drástico”, avisa Janet. Ele olha, se mantém em silêncio e um corte nos leva exatamente para a reportagem, exibida na televisão. A montagem é a principal responsável por dar ritmo e proporcionar risadas incontroláveis. O timing cômico apresentado pela equipe é invejável, não servindo apenas para o humor, também para a continuidade do filme e salientar as difíceis decisões que Paul precisa tomar sem pensar muito.

Na aula seguinte, a câmera acompanha o protagonista entrando até se deparar com uma multidão de alunos que o aplaudem euforicamente. Ele quer saber como aparece nos sonhos alheios, então os jovens contam suas aventuras subconscientes. Em um deles, Paul admira cogumelos enquanto o aluno é perseguido por um serial killer; em outro, as pessoas fazem o que podem para sobreviver a um terremoto e o professor entra no refeitório, caminhando serenamente. O diretor brinca com o potencial surreal dos sonhos, tornando o filme ainda mais engraçado e original.

Uma agência de publicidade especializada em redes sociais e tendências o convida para debater ideias para uma possível parceria. Trent propõe um comercial para o Sprite, no qual o protagonista sonha com a bebida. Desde quando a imagem de um homem calvo e ordinário é responsável por chamar a atenção de milhares de pessoas? Há também a hipótese de uma parceria com Obama, no entanto, o professor está ali justamente para angariar fundos para o livro das formigas, um projeto que desperta paixão. Trent e os outros sócios falam outro idioma, não à toa, desconhecem todas as referências citadas por Paul. Antes, esquecido pelos poucos amigos e pela própria família, o protagonista vira uma celebridade. Eis a questão: assumir a condição de produto não vai contra o que ele sempre pregou? Paul é um intelectual, um estudioso, não uma febre do TikTok. A fama expõe a falência dos valores da nova geração, incapaz de se interessa por algo que não seja instantâneo e artificial; em contrapartida, confere ao protagonista uma atenção que jamais teve. É triste e lisonjeiro ao mesmo tempo; estressante e sedutor.

Molly, uma das sócias da tal agência, convida Paul para tomar drinques. Ela é jovem e atraente, o encontro não faz o menor sentido, todavia, o professor invadiu seu inconsciente e proporcionou inesquecíveis aventuras sexuais. Os cortes em sequência revelam a dúvida e a pressão sentidas pelo “herói”, que aceita um inusitado convite. Molly quer tornar seu sonho realidade, entretanto – e a montagem é essencial para a total compreensão desse aspecto, intercalando o real e o imaginário -, o homem da “madrugada” não é Paul. Na verdade, até é, mas em uma versão fabricada. No sonho, ele toma a iniciativa como um autêntico galanteador; no mundo real, ele ejacula antes de abrir o zíper da calça e não economiza nos efeitos da flatulência. Estamos falando de um homem vulnerável e inseguro – as camadas de roupa enfatizam isso -, não de um fenômeno global.

Se o inconsciente humano é o responsável por sua meteórica fama, sua derrocada pode ser igualmente fulminante. Em vez de sonhos, Paul se transforma numa espécie de Freddy Krueger, que ataca e mata suas vítimas brutalmente. Tudo bem, o protagonista não é cool nem marcante, mas é sensível e empático. Seu arco é, no fundo, uma maneira inteligentíssima de criticar a artificialidade do mundo contemporâneo. Não é preciso realizar algo relevante para se tornar um ícone, pelo contrário. Quanto mais bobo e vazio você for, maior a chance de alcançar o estrelato. Ele queria escrever sobre formigas e ganhou notoriedade por “entrar” na mente das pessoas. O comentário elaborado pelo roteiro se estende a diferentes esferas artísticas e profissionais – a idiotização do povo, incapaz de ler ou assistir algo que dure mais de cinco minutos. O outro lado da moeda é a famigerada “cultura do cancelamento”. Os imbecis que alçam qualquer um à condição de ícone pop, também se consideram juízes de seus próprios tribunais. Pelo fato de serem atacadas por uma versão fictícia/materializada de Paul, eles se sentem no direito de excluí-lo da sociedade. O protagonista é expulso de restaurantes, espancado e xingado pelos alunos, que abandonam as salas de aula. A destruição de sua reputação e carreira ganha contornos mais melancólicos quando sua família é afetada e, em vez de abraçar Paul, o culpa pelos maus tratos que têm recebido. Sua solidão, notável desde o início, através de planos nos quais o vemos num vazio completo e por enquadramentos que destacam a distância entre os personagens, se multiplica no terceiro ato. Os espelhos estão por aí, refletem o dilema do professor e suas múltiplas versões. Em determinado momento, o espelho é responsável por dividir Janet e Paul – um detalhe importante, já, que, pouco tempo depois, ela o dispensa.

A intensa luz, impossível de se apagar, no porão do amigo, simboliza sua atual fase: a incontrolável onda de ódio despejada em seus ombros.

Os alunos fazem uma sessão de terapia cognitiva, cujo objetivo é apresentar Paul como realmente é. Ele abre a porta calmamente e fica distante dos demais, evidenciando o cancelamento, o status de monstro e a banalização da palavra “trauma”. Kristoffer Borgli não avisa que estamos no pesadelo e essa “surpresa” faz parte da graça de “Dream Scenario”. No primeiro, por exemplo, o protagonista surge pela fresta de uma porta, o que denota perigo. O diretor e, principalmente, Nicolas Cage se divertem bastante nessas sequências em que podem extrapolar suas imaginações.

Paul ainda ama Janet e, em uma das cenas mais tristes do filme, ele deixa as filhas em casa e conversa com ela. Sua imaginação nos leva a planos fechados, olhos marejados e uma bonita intimidade, no entanto, a realidade nos puxa para a habitual distância e uma fala seca.

Os sonhos e pesadelos passaram e o protagonista decide lançar um livro sobre o ocorrido. O fato da editora reduzir drasticamente o número de páginas e mudar o título para um que “funcione melhor para o público” sintetiza perfeitamente o mundo em que habitamos. Nem sempre escolhemos o que somos, a sociedade atual impõe papéis e versões.

Paul termina sozinho, obrigado a relembrar um período aterrador. Borgli conclui a obra com uma sequência imensamente bela, tocante e melancólica. O uso da câmera lenta é preciso, confere uma aura mágica ao “reencontro”. A existência ordinária e comum não era assim tão ruim…

Nicolas Cage oferece uma performance maravilhosa, equilibrando, perfeitamente, comicidade e drama. Suas reações e sutis inclinações vocais são geniais.

“Dream Scenario” é um projeto ambicioso e fascinante. Sem dúvida, um dos melhores filmes lançados nessa década.

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