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Após o trabalho na fábrica, os homens se reúnem no estabelecimento comandado por Nick Powers. A fumaça simboliza o machismo impregnado no ambiente e os operários vão à loucura quando Lily, filha de Nick, aparece para servir as bebidas. Desde os catorze anos, seu pai a usa como prostituta, uma verdadeira mina de ouro. Todos tocam em seu corpo e a chamam por nomes indecentes. A protagonista não reage, no máximo desvia de um puxão; se acostumou e aceitou a condição que lhe foi imposta. O político que mantém o bar aberto realiza favores para Nick, pois sabe que é um cliente VIP em seu “bordel”. Lily não está a fim, dispensa o sujeito com boas garrafadas na cabeça. Em vez de protegê-la, o pai fica furioso e a agride. Os planos-detalhe das pernas da protagonista marcam a visão subjetiva de porcos que não respeitam as mulheres.

Cragg, o sapateiro local, é o único amigo de Lily, o único que a encoraja a sair daquela cidade e explorar novas possibilidades. Seu presente é um livro do filósofo Friedrich Nietzsche, que ressalta a constante exploração que permeia a trajetória humana. Ela sempre foi usada, estava na hora do jogo virar. Juntamente com Chico, sua colega no bar, Lily viaja para Nova Iorque. Um funcionário ameaça expulsá-las do último vagão do trem, porém a protagonista, com todos os truques que aprendeu ao longo dos anos, consegue o que deseja. Esse é o início de uma trajetória baseada em sedução, cinismo e chantagens emocionais. Sem qualquer experiência, ela é rapidamente contratada por um importante banco. Seu trabalho, no fundo, não envolve cheques e papeladas, mas uma estratégica aproximação com aqueles considerados poderosos e influentes. As outras moças, estabelecidas no emprego, são ultrapassadas por Lily num piscar de olhos. Cada departamento é comandado por um homem diferente e a protagonista, sorrateiramente, se envolve com todos, subindo semanalmente de andar. Ao ultrapassar seu antigo patrão, responsável por sua promoção, Lily simplesmente o ignora. O roteiro compreende perfeitamente a diferença entre as pessoas que habitam os diferentes andares. Seu primeiro chefe, interpretado por John Wayne, é jovem e quer apenas levá-la para jantar. O senso de progressão é muito bem trabalhado, presente no figurino, na aparência cada vez mais glamorosa da personagem, no tamanho de suas salas e nas intenções de seus superiores. Brody cai na armadilha e é pego no banheiro feminino por Ned Stevens, que o demite imediatamente. O espelho esconde as diversas personas construídas por Lily, que escolhe a mais apropriada para convencer Ned de que foi obrigada a transar com Brody e que é uma pobre coitada. Dias se passam e adivinhem quem é o novo namorado da protagonista: Ned, que é noivo da filha do Presidente do banco. Maliciosamente, ela ignora um telefonema, armando o palco para sua interpretação infalível. Da mesma forma, Lily convence Carter de que não sabia de nada, que não queria estragar a felicidade de sua filha…

Pois bem, ele é o novo amante da protagonista. A câmera filma o prédio do lado de fora, escalando os andares, emulando a carpintaria de Lily para chegar no topo. Como mencionei, os homens dos departamentos mais influentes, além de ricos, têm uma vida estável e não estão dispostos a destruí-la por bobagens. Lily é uma fixação, a pérola que falta na gaveta dos banqueiros. Brody perde tudo e Ned cogita o suicídio caso não a tenha ao seu lado. Carter transforma sua casa numa mansão, lhe dá tudo do melhor e exagera nos presentes. Talvez o duelo sanguinolento não estivesse em seu script, no entanto, assim que percebe a oportunidade de eliminar os dois em uma cajadada, não perde tempo. Sua reação ao vê-los mortos em seu quarto é assustadoramente desumana – uma passividade quase alegre.

Lily é chamada no banco para resolver pendências e o diretor centraliza sua poltrona no quadro, ressaltando o poder adquirido. Courtland Trenholm, o novo Presidente, decide enviá-la para a filial mantida de Paris. Ele é o personagem que impacta a protagonista a ponto de olhar para si e perceber que suas conquistas, na verdade, refletem o vazio que corrói sua alma.

Se ela queria provar que poderia colocar todos os executivos em seus pés, parabéns; se estava disposta a experimentar a tese de Nietzsche, acumulando inúmeras riquezas, parabéns. A questão é: até quando a exploração é suficiente? Até quando podemos aguentar a infelicidade à mercê de conquistas injustas e exclusivamente materiais. Lily nunca amou ninguém, ama somente sua “vingança pessoal”. Todos os homens estão no mesmo pacote? A vingança não é um sentimento demasiadamente corrosivo para ser o mote de uma existência inteira?

“Baby Face” segue a estratégia de sua protagonista, se valendo de sutilezas e escolhas elegantes. As joias, roupas extravagantes, salas maiores e mansões vazias reforçam sua gradual perda de empatia. Lily era empurrada pelo pai para atender os prazeres de figuras monstruosas, agora era ela quem abria e fechava portas na cara de pretendentes desesperados.

O plano-detalhe do charuto é suficiente para Ned notar a presença de outro homem, sem que uma palavra sequer seja dita. O zoom nas iniciais do nome de Trenholm, presentes em seu carro, indicam sem alarde quem será o próximo alvo da protagonista.

Quando o novo Presidente chega em casa, Lily o abraça fortemente; na medida em que ele fala sobre a falência do banco e que precisará de sua ajuda, seu rosto murcha, seus braços se afastam e ela se vira. No fim, Lily não parece uma mulher, mas uma boneca em um universo imaginário.

O diretor Alfred E. Green e a equipe responsável pelo design de produção merecem todos os elogios por transformarem “Baby Face” em um filme coerente, delicado, conciso e fascinante. As coisas são sugeridas, Green nega exposições baratas, o que fica evidente na cena em que Lily tem uma crise existencial. Ela enche o copo de whisky, fuma um cigarro e se movimenta inquietamente, até não aguentar mais a internalização de tais sentimentos e gritar. O pequeno vagão do trem torna tudo mais intenso e claustrofóbico – absolutamente todos os cenários conversam com a situação em que a personagem se encontra, adicionando camadas interessantíssimas ao espetáculo.

Barbara Stanwyck nasceu para interpretar Lily Powers. Sempre marcante em tela, a atriz destila todo o seu charme, poder de sedução e cinismo através de olhares e falas com uma entonação minuciosamente calculada. É engraçado notar quando ela abandona por alguns segundos a persona, demonstrando uma certa impaciência – principalmente com Carter. Seu talento para o melodrama é inegável e seu arco possibilita que ela nos impressione com cenas genuinamente tocantes.

“Baby Face” é uma obra prima, possivelmente o filme mais importante da “Hollywood pre-code”.

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