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Em plena década de sessenta, na fria Boston, a jovem Eileen para o seu carro e observa um casal se relacionando. Sexualmente curiosa, solitária e sonhadora, ela coloca neve em sua parte íntima, a fim de sentir algo além do vazio habitual. Em determinados momentos temos acesso a sua imaginação, visões subjetivas e muitíssimo bem inseridas pela montagem. Presa a uma existência banal, Eileen, ironicamente, trabalha numa prisão. Seus colegas a provocam e a excluem de compromissos sociais. O voyeurismo é um hábito constante, responsável por transportá-la a um universo de possibilidades irreais e estimulantes. Em casa, a protagonista cuida de seu pai, um ex-policial bêbado e desagradável. Jim não é a figura paterna caridosa que Eileen necessita, pelo contrário, a chama de lixo e a compara, negativamente, com a irmã mais velha, casada e estabelecida. A fotografia e a direção de arte ressaltam a tristeza inerente a vida da jovem a partir de tons acinzentados, ambientes escuros e dominados por cores neutras. Sua passividade seria irritante, se não fosse tão honesta e relacionável. Eileen foi convencida de que é uma figurante no universo, que nada de especial a aguarda. A voz que denota inocência e as roupas esquecíveis são elementos importantes na composição de uma personagem cujo “chamariz” é o fato de ser comum.

Após a aposentadoria do psicólogo oficial, a prisão vai atrás de um novo profissional. Eis que surge Rebecca, uma mulher sedutora e misteriosa. O carro e o casaco vermelho, assim como o cabelo loiro, chamam a atenção de Eileen, que troca olhares com ela. A protagonista, rapidamente cria um fascínio pela psicóloga, que a valoriza, inclusive a convida para tomar um drinque. O diretor William Oldroyd oferece uma visão empática, mostrando o que, muitas vezes, é deixado de lado. O preparativo para o coquetel é uma verdadeira gincana, reflete a euforia e o nervosismo de Eileen, que quer impressionar “casualmente”. Os close ups que exploram olhos brilhantes, os planos-detalhe da mão de Rebecca tocando em sua perna e a dança íntima marcam a esperança de uma jovem adormecida.

Firme, intrigante e sábia, Rebecca é uma contradição ambulante, que bebe, fuma e fala demais, a ponto de passar uma certa insegurança. Por que ela convidou a protagonista? Sua aparência esconde segredos e uma carência proporcional a sua beleza. “Está de bom humor. O que aconteceu?”, pergunta Jim, curioso com a estranha animação da filha. Eileen não precisa de concretudes para dar saltos de alegria, apenas do mínimo de carinho e Rebecca proporciona até mais que isso. A fotografia passa a investir no vermelho. Na saída do bar, por exemplo, a cor, imersa no rosto das personagens está diretamente relacionada às intenções amorosas da protagonista. A montagem, além de trabalhar bem a psique de Eileen, confere humor através de um corte abrupto. Confiante e esperançosa, a jovem bebe várias doses, no entanto, acorda vomitando no próprio carro.

No dia seguinte, a protagonista veste um casaco rosa, não é mais aquela garota apagada, todavia, ao saber que Rebecca não está lá, murcha novamente. Ela deita e dorme na mesa da amada, passando a ideia de uma “adoração obsessiva”, que, na verdade, não é real. Talvez seja, não no sentido doentio do termo, mas no de admitir o desânimo que a perseguiu até aqui. O figurino, como mencionei acima, é fundamental na construção das personagens. Olhando por outra ótica, apesar de mudar a roupa, Eileen continua usando o que sua mãe vestia, ou seja, não possui personalidade própria, ainda é muito presa a traumas do passado. Sua relação com Jim é interessante, apresentando toda a humanidade e compreensão da protagonista, que se dispõe a cuidar de um homem estúpido, e seu lado mais sombrio, já que, a todo instante, achamos que ela está prestes a matá-lo. Nesse sentido, a trama envolvendo Lee Polk, um jovem detento que assassinou o pai, adiciona temperos condimentados ao filme. A princípio, a recorrente presença do garoto nos leva a crer que Eileen o imitará, contudo, é Rebecca quem se envolve profundamente com a família e o trágico caso. Polk potencializa o suspense e, de certa forma, une as personagens centrais. “Ele matou o pai, tem uma diferença”, “Algumas famílias são tão doentes, que a única saída é alguém morrer” e “Meu pai não causará problemas” são frases que insinuam um acontecimento trágico.

A psicóloga volta a entrar em contato com a protagonista, a convidando para passar a véspera de natal em sua casa. Adivinhem de que cor é seu batom e sua roupa? Eileen mergulha numa realidade onírica, o que fica nítido em seu comportamento e aparência. Thomasin McKenzie, que já oferecia uma performance memorável, sobe de patamar no último ato, impressionando pela genuinidade de seus gestos e pequenos movimentos. No banheiro da amada, ela se estapeia, se chacoalha, respira fundo e fala consigo. É tudo tão orgânico, que não consigo afirmar o que estava no roteiro e o que foi improvisado. O fato é que McKenzie atinge um alto nível de conexão com o espectador, que se identifica com tais inseguranças e euforias. Seu riso não advém de uma piada, mas da percepção da situação em si. Olroyd, em vez de abraçar o romance, dá um nó na nossa cabeça. Rebecca diz coisas estranhas, a casa está um caos e não parece preparada para receber alguém. Por que ele vai de um plano americano da psicóloga para um plano médio, fechando o quadro? A única intenção desse corte é nos perturbar, colocar Rebecca numa posição de dúvida. Seu jeito sedutor e carente é bem particular, porém o que Olroyd está revelando? Um barulho estranho, a câmera é posicionada na fresta da porta – sem que nada seja dito, ficamos na ponta da cadeira, esperando por respostas -; até que, em um close up de Eileen, Rebecca faz uma surpreendente revelação. Os rostos imersos nas sombras potencializam a claustrofobia, colocando as duas numa situação bastante delicada. Cúmplices e amantes eternas ou o fim de uma curiosa relação? O diretor, aos poucos, insere pistas do que irá acontecer, e testemunhar o intenso desfecho é incrível, justamente pelo minucioso trabalho da equipe envolvida no projeto. Não entrarei em terreno de spoilers, entretanto, não posso deixar de destacar duas importantes escolhas na fotografia. O vermelho, ainda mais intenso, assume uma nova conotação – uma mistura poderosa de sensações – e a fumaça, que dá início ao filme, retorna, realizando uma rima magnificamente elaborada. As linhas tortas dão esperança para aquela que sempre trilhou o caminho natural…

A trilha sonora ajuda na concepção de uma atmosfera Noir, a partir de batidas jazzísticas que combinam romance e tensão.

Esta é, sem dúvida alguma, uma das melhores performances da carreira de Anne Hathaway. Ela encarna a dama Noir com muita propriedade, levando o espectador a admirá-la enquanto questiona sua índole. A atriz chega a nos assustar, para, no fim, ser um meio termo entre a absoluta surpresa e o que imaginávamos. Hathaway compõe uma personagem humana, tão desesperada por afeto quanto Eileen.

Percebam como a protagonista fuma no final; a tosse se foi, a postura intacta reforça o impacto de Rebecca.

“Eileen” é um excelente thriller romântico.

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