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“All Of Us Strangers” é, muito provavelmente, o melhor filme lançado no ano passado. Há muito tempo eu não via uma obra trabalhar tão bem realidade e fantasia, concebendo um painel, simultaneamente, trágico, belíssimo, poético e melancólico sobre seres à deriva, perdidos em seus apartamentos, jogados como almas perdida.

Adam é um roteirista que vive uma vida pacata e desestimulante. Ele passa os dias deitado no sofá, se alimentando de sobras encontradas na geladeira. Harry, seu vizinho, bate em sua porta e pergunta se o protagonista está interessado em beber um whisky, mas o roteirista, por medo e insegurança, refuta a proposta. Adam olha para fotos antigas e notamos que existe um peso naquelas imagens, um trauma a ser analisado. Seus pais, mortos em um acidente de carro quando ele tinha apenas doze anos, são o mote de seu novo texto. Repentinamente, o protagonista está em sua antiga casa, recebido pelos falecidos progenitores, fantasmas materializados. Eles não são assustadores, no entanto, simbolicamente, o fato de estarem mortos é fundamental para suscitar memórias assombrosas na mente do escritor. A opção por enquadrá-lo de costas (na altura da nuca) reforça o seu distanciamento perante o universo e uma depressão jamais discutida. Enquanto o casal dança apaixonado, Adam fica no fundo, praticamente no meio dos dois – está entre aqueles que o criaram e, ao mesmo tempo, deles afastado, distância essa que representa o desamparo provocado pela ausência de amor.

Quanto mais retorna “ao passado”, o protagonista se liberta de amarras e inseguranças. Harry agora é convidado para entrar e, ao perguntar se pode beijá-lo, recebe a seguinte resposta: “tenho que lembrar de como se faz isso”. Todas as interações são honestas e humanamente tocantes. Adam nunca se apaixonou, não tem amigos e não assumiu verdadeiramente a homossexualidade. Harry, em contrapartida, é mais solto e carismático, o que, na verdade, não quer dizer muita coisa. Estamos diante de figuras igualmente solitárias, deprimidas e dispostas a experimentar. Harry é compreensivo e sensível, rapidamente vira o principal/único confidente do protagonista. Pela primeira vez, genuinamente alegre, Adam retorna à antiga casa, onde conversa com a mãe, que pergunta sobre seus relacionamentos. “Desde quando?” e “Você não parece gay” são as reações instantâneas dela, que tenta, sem sucesso, não ser indelicada.

Esse é um dos grandes baratos dessa curiosa relação: Adam, a essa altura, já é mais velho que os pais, logo, muitas vezes, as posições se invertem, com eles perguntando sobre o mundo moderno, sobre o que é aceitável e até mesmo como morreram. Por outro lado, o protagonista está lá para cicatrizar feridas que o impedem de seguir adiante. Na infância, Adam sofreu bullying e, sem o apoio dos pais, que optavam pela negação, se mantinha num silêncio desesperador. A reação do pai é um pouco diferente. Ele admite que suspeitava de algo e que não se intrometeu, pois não saberia o que fazer; pede desculpas e demonstra uma tremenda vergonha de si. A tardia resolução de sua sexualidade leva Adam a lugares além de sua moribunda residência. A montagem acompanha seu arco, conferindo agilidade à narrativa através de cortes mais intensos e significativos. A fotografia, que optava exclusivamente por tons azulados, adere ao vermelho e ao roxo, transmitindo a euforia e o desejo dos amantes a partir de tais cores. O zoom, o design de som e as fusões salientam a conexão entre os dois e o estado entorpecido em que se encontram – amoroso e literal.

O diretor Andrew Haigh, a fim de transmitir a intimidade e a ternura entre os personagens, mantém o quadro fechado em diversos momentos, enfatizando o contato físico e os olhares.

A montagem organiza um pesadelo dentro do outro, formando uma atmosfera carregada que conversa com os encontros com os pais, sua conturbada personalidade e o medo de perder Harry. Tudo sempre foi tão frágil na vida de Adam, que o encaixe quase perfeito chega a atormentá-lo. A direção de arte é precisa ao caracterizá-lo como uma criança na antiga casa. A decoração do quarto, os vinis, os pôsteres, os brinquedos, a arquitetura aconchegante e o pijama o acolhem, ao mesmo tempo em que o colocam numa posição de extrema dependência. Sua idade interessa até certo ponto; quando ele não consegue dormir ou teme pela morte dos pais, corre e pede para dormir com eles. O tipo de discurso proferido pelos pais é lindíssimo e cabe somente nesse universo. São palavras que só diríamos sabendo de algo a mais, tendo noção de que as coisas mudaram e de que aquele menino, agora, é um homem traumatizado.

As desculpas e o afeto familiar são intoxicantes, capazes de levar o espectador às lágrimas, principalmente na despedida. Claro, o encontro tem um prazo de validade, é sobre a busca por aceitação, um abraço e compreensão. “Eu te amo muito. Ainda mais agora que o conheço”, afirma o pai, admitidamente tímido e reservado. Os pesadelos são pistas da reviravolta proposta pelo roteiro nos instantes finais, assim como a seguinte frase proferida pela mãe em relação a Harry: “Ele precisa de alguém que cuide dele. Tem um rosto tão triste”.

A fotografia trabalha com abordagens distintas, dando à fantasia um aspecto delicado e mágico através de cores quentes e de uma iluminação radiante. A realidade, por sua vez, volta a ser predominantemente azul – cor de praticamente todas as camisas do protagonista -, destacando a melancolia inerente aos personagens. Outro detalhe fascinante da direção de arte, que sugere algo ao espectador, é o fato do edifício ser desértico, um verdadeiro antro da solidão, tendo apenas Harry e Adam como residentes – todos os apartamentos ficam apagados. A casa do escritor é espaçosa e vazia, tem até elementos vívidos, como, por exemplo, o abajur vermelho, todavia, é, majoritariamente, fria.

A escuridão, maior que a habitual, a lenta caminhada de Adam até o apartamento de Harry – onde ele nunca havia entrado -, espertamente estendida por Haigh, a fim de suscitar um suspense, a bagunça generalizada e a cocaína espalhada nos preparam para um desfecho trágico. Eu esperava pelo convencional, por um fim poderoso, porém previsível. Não me lembro a última vez que fui pego tão de surpresa assim. Literalmente nada é capaz de te preparar emocionalmente para os últimos minutos de “All Of Us Strangers”.

Além de conter o plano final mais extraordinário dos últimos anos, o filme se prova um verdadeiro exercício de carpintaria audiovisual, permitindo que o espectador tenha diferentes interpretações. Não quero entrar em maiores detalhes, mas há sutilezas que nos direcionam a um caminho, e outras que nos obrigam a repensar estas convicções. Afirmações categóricas não cabem em uma obra cujo cerne é a imaginação e o poder do amor. Não sei até que ponto esse trabalho é pessoal para o cineasta; de qualquer forma, é incrível a maneira como ele concebe o paradoxo entre solidão e paixão. O real e o irreal se misturam a ponto de não ligarmos para tal diferenciação. Os sentimentos estão em tela e não se tornam menores, pelo contrário, ganham contornos mais incríveis ao percebermos a natureza do romance – seja lá qual for. Haigh concede o palco para seres normalmente deixados de lado e é empático ao compreender a mente daqueles que nunca tiveram alguém.

As escolhas musicais são maravilhosas, ajudam na progressão narrativa e tem muito a dizer sobre as relações e os próprios personagens – especialmente “Always On My Mind, do Pet Shop Boys, e “The Power Of Love”, da banda “Frankie Goes to Hollywood”.

Jamie Bell e Claire Foy estão impecáveis como os pais fantasmagóricos, dispostos a aprender e a recuperarem o que deixaram escapar. São composições igualmente delicadas, empáticas e amorosas.

Paul Mescal já alcançou o status de “grande ator”. Após “Aftersun”, confesso que fiquei curioso para saber qual seria seu próximo passo e, para a minha felicidade, ele escolheu um projeto tão espetacular e audacioso quanto o anterior. Mescal é naturalmente carismático e sua facilidade para encarnar jovens adultos machucados e vulneráveis é raríssima.

Andrew Scott oferece, talvez, a melhor performance do ano passado. A voz claudicante, as pausas, a forma que evita o contato direto e os risos de nervoso são marcas muito emblemáticas de um personagem angustiado e humano.

A química entre os dois é algo a ser estudado, um dos motivos fundamentais pelo êxito do filme.

-Estou com medo.

-Eu sei, mas estou aqui.

“All Of Us Strangers” é uma obra prima.

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