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Bowie, Chicamaw e T-Dub são bandidos altamente reputados pela polícia. Antes de seguirem a rota de novos assaltos, o trio para na casa do irmão do segundo para descansar e despistar as autoridades locais.

“Este garoto e esta garota nunca conseguiram se integrar ao mundo em que vivemos”. Acompanhada de close ups, essa frase é a primeira coisa que surge na tela – e uma das mais importantes. Talvez a minha introdução leve o leitor a acreditar que “They Live By Night” é um filme de ação ou suspense quando, no entanto, é um dos mais belos romances já realizados. Bowie viu o seu pai morrer, se envolveu com pessoas que não deveria e acabou na cadeia. Precisando de um terceiro integrante, os outros dois o ajudaram a fugir, sabendo que o jovem seria facilmente chantageado caso se recusasse a cooperar. Sem grandes exemplos e pilares, Bowie decide acompanhar Chicamaw e T-Dub, porém, logo de cara, notamos que ele é completamente diferente dos colegas, cujas entonações vocais denotam uma certa hostilidade. O protagonista, por sua vez, é sensível e delicado – qualidades ignoradas no meio em que habita. Eis que surge Keechie, sobrinha de Chicamaw, e tira Bowie de sua zona de conforto, o fazendo olhar para si, em vez de rodar pelas estradas americanas atrás de recompensas pouco significativas.

“Não falo muito”. Bowie é tão puro e ingênuo, que custamos a acreditar que tenha a capacidade de assaltar bancos. As pessoas têm facilidade em fazer aquilo que demanda pouco esforço emocional, o que parece lhes ter sido destinado. O protagonista sempre viveu cercado de homens brutos e vazios e a presença de uma garota mexe com seus instintos mais primitivos e pessoais. É ali, naquela pequena casa, que Bowie percebe que não quer ser um bandido, mas um cidadão comum. Abrir um posto, se mudar para o México, se casar… suas aspirações são simples e humanas.

Keechie, a princípio, tende a se esquivar dele, acreditando que é um mero delinquente, entretanto, gradativamente, também demonstra um tímido carinho, evidenciado na irritação ao escutar seus planos para o futuro.

O trio segue o mapa do crime e se torna manchete recorrente nos jornais.

Numa breve pausa, Bowie decide comprar um presente para sua amada.

Um acidente o conduz novamente a ela. Afeto e tensão tomam conta de seus diálogos, repletos de intenção e receio. No fim, um diz o que o outro deseja e eles assumem um compromisso: fugir, esperar a poeira baixar e viver juntos para sempre. A infelicidade e insegurança de Keechie ficam evidentes na forma despreocupada que se envolve com um sujeito procurado em diferentes estados e na frase que cisma em repetir: “se você quiser”.

Eles se casam por apenas vinte dólares – o letreiro em neon praticamente os convoca e se acomodam em um chalé discreto. O dinheiro que havia juntado era suficiente para uma vida tranquila e prazerosa.

“Sempre quis ir ao cinema de mãos dadas com uma garota”. Bowie não é um meliante, se enfiou em um buraco por falta de opção e orientação. Enxergamos sua real face, o que o faz feliz e sabemos que, se tivesse uma outra oportunidade, jamais se envolveria com o crime. Por esse motivo, “They Live By Night” é tão trágico. Quando se sentem apertados, T-Dub e Chicamaw literalmente o obrigam a voltar para um último assalto. A partir daí, a intensidade toma conta da trama, no amor e na brutalidade.

O figurino ajuda a diferenciá-lo dos demais desde o início. Seus colegas vestem casacos pretos e ele, uma camisa mais clara.

Nicholas Ray o enquadra em posição oposta às de T-Dub e Chicamaw ou o coloca entre os dois – encurralado. Bowie tem aversão a violência e sempre que um deles fere alguém, o foco não é a ação em si, mas o olhar preocupado do protagonista.

Em relação ao romance, a abordagem do diretor é elegante e íntima. A movimentação dos personagens no quadro e os close ups, que decifram rostos quietos são bastante expressivos. A câmera de Ray adentrava a alma das criaturas mais solitárias possíveis e fazia com que o espectador olhasse além do óbvio. Claro, quando Bowie está numa situação delicada, os planos fechados potencializam o seu medo, no entanto, o artifício está longe de se limitar a esse sentido. Na cena em que ele presenteia Keechie, por exemplo, enxergamos uma felicidade palpável e genuína.

A proximidade é notável, mas o que realmente merece destaque na direção de Ray são os seus enquadramentos em que um personagem aparece em primeiro plano e o outro, em segundo. Enquanto Bowie diz algo, sua amada reage – e vice-versa. Somente o espectador tem a visão geral, a chance de enxergar emoções e expressões distintas. A timidez e a insegurança são ratificadas pelo cineasta algumas vezes dessa forma, assim como a preocupação e a paixão, podendo, por último, ter um valor simbólico. Em determinado momento, o casal está deitado e ela está em primeiro plano. Atrás, Bowie está mergulhado nas sombras, como se Ray informasse ao espectador que, por mais especial e raro fosse aquele período, o protagonista estava fadado à tragédia.

O caminhar até a “igreja” é especialmente belo pelo contraste entre o que os personagens sentem – inocente e potente – e a precariedade do lugar. Não importa se o casamento custa vinte dólares e se é realizado por um “farsante”. Luxo não cabe em um romance “marginal”. 

Nicholas Ray era dono de uma rara sensibilidade, exposta em cenas magistralmente orquestradas. Em meio ao caos, Bowie decide levar Keechie para passear e jantar fora pela primeira vez. Suas roupas são exuberantes e a natureza, acompanhada por tons claros, traz uma inesperada tranquilidade. No restaurante, uma cantora para na mesa deles, que demonstram uma alegria tão pura, que arrasa com o coração do espectador. Se lembram da frase que abre o filme? Então, Ray os insere brevemente no mundo em que vivemos…

O que falar da cena em que Keechie, adoecida e grávida, diz: “temos sorte” e Bowie responde: “ser pai torna um homem responsável.”Emocionante, porque é real e verdadeira; relacionável, porque ela tem razão, o que nutrem é raro.

Na primeira vez em que vemos o protagonista circulando pela cidade, percebemos a estranheza que ele sente, enfatizada por cortes frequentes.

Em contrapartida, na cena do assalto, a câmera é posicionada atrás do ombro de Bowie, que dirige o carro, dessa forma, Ray permite que a ação seja mais fluida e verossímil – sem muitos cortes, a agilidade dos bandidos é traduzida na tela pelo diretor.

A fotografia, como o próprio título nos indica, aposta em tons escuros, a ponto de não enxergarmos nada além dos personagens. Diretamente ligada à desesperança e ao estilo de vida danoso de Bowie, a escuridão dá espaço a tonalidades mais claras em momentos bem específicos: o já citado passeio que culmina no jantar e a melhor fase do casal – ressaltada também por roupas leves, que mostram seus braços.

O lar deles é aconchegante, não só pela iluminação, mas pela decoração, que dá vida ao ambiente. Nesse sentido, há de se exaltar o trabalho de direção de arte, que confere uma grande importância ao relógio, responsável por sincronizar Bowie e Keechie, mesmo quando estão distantes.

A trilha sonora cabe perfeitamente na trama, variando entre temas dramáticos, delicados e tensos.

Cathy O’Donnell oferece uma performance singela e doce. Encantadora e largada, Keechie vai da jovem silenciosa para uma mulher determinada. Dor e paixão caminham lado a lado em seu arco. Ela sabe que o que vê é breve e o que sente, eterno. A esperança é apenas um sintoma dessa poética história de amor. A garota disfarçada do início, termina lendo uma carta aos prantos. O alcance de O’Donnell é impressionante.

Além do belo nome, Farley Granger também era dono de um enorme talento. Sua composição passa muito por expressões faciais e pela entonação vocal, capazes de denotar desconforto e sensibilidade; felicidade e medo; ingenuidade e maturidade. Eles são a alma e o corpo do filme, sem dúvida alguma, os principais responsáveis pelo envolvimento do espectador com a trama – Ray divide o pódio.

Poucas vezes torci e me preocupei tanto com dois personagens. Por mais maduros, apaixonados e felizes que se tornem, Bowie e Keechie não têm para onde ir, nem o que fazer, a não ser esperar e aproveitar enquanto ainda é possível.

“They Live By Night” é, possivelmente, a melhor estreia da história da sétima arte. Uma obra prima que valoriza e reforça valores e sentimentos pouco apreciados pela grande maioria.

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