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Em “The Killing Of A Sacred Deer”, Yorgos Lanthimos não perde sequer um segundo para deixar o espectador inquieto. Ainda com a tela preta, uma trilha sonora grandiosa e trágica surge. A primeira imagem é a de um coração batendo numa intervenção operatória. O cirurgião caminha em câmera lenta e, antes mesmo que tenhamos noção da bomba que estamos prestes a testemunhar, sentimos uma certa estranheza no ar.

Steven, o cardiologista, conversa com seu colega sobre relógios e, até nessa situação casual, o desconforto é notável, já que a entonação vocal do protagonista simplesmente não varia – monocórdica.

O médico tem um amigo com idade para ser seu filho. Qual é a natureza daquela relação? Por que Martin o visita diariamente? Por que sempre que estão juntos uma trilha dissonante e arrepiante aparece?

Steven tem uma família “perfeita”: Anna, uma esposa amável, e dois filhos perfeitamente saudáveis. O ângulo alto utilizado pelo cineasta para apresentá-los alimenta a impressão de que existe algum distanciamento ali, reforçado através de discordâncias bobas. Mas não, estamos diante de pessoas que vivem uma vida normal e encaram as armadilhas cotidianas com afeto e propriedade.

A presença marcante da natureza, os espaços abertos e os tons quentes ressaltam a harmonia familiar, prestes a desabar. Quando Martin almoça na residência dos Murphy, ele visita o quarto de Kim. Nesse diálogo, Lanthimos e seu montador habitual criam uma desorientação visual, indo de um ângulo baixo, no qual os rostos dos personagens não aparecem, para um plano aberto em que vemos não só os rostos, mas o quarto inteiro e um pouco da casa. Em um filme extremo, transições abruptas se mostram uma escolha narrativa interessante.

Os close ups realmente invadem os rostos dos personagens, que, como mencionei, não mudam a tonalidade vocal. A força de suas interpretações está em pequenas alterações no olhar, em gestos mais enérgicos e na fala acelerada ou pausada – dependendo da situação.

Martin decide retribuir o favor e convida o amigo para jantar em casa. Sua mãe, uma viúva, força uma intimidade, no entanto, Lanthimos mantém a câmera distante, salientando o desconforto de Steven, acentuado através de planos fechados.

Após rejeitar tais investidas, o protagonista passa a ignorar Martin, que assume a posição de stalker. A apreensão no rosto do médico e os tons frios, pouco presentes anteriormente, são prenúncios importantes em um filme que está sempre um passo à frente do espectador. Em uma bela manhã, Kim avisa que Bob não quer ir à escola. O pai sobe e descobre que a coisa é bem mais séria: seu filho não consegue mover as pernas.

Os exames não detectam nada, todavia, assim que desce a escada rolante, Bob desaba novamente. O uso do plongée indica que o adoecimento é de uma ordem sobre-humana, desconhecida e imparável.

Martin, então, convida Steven para tomar um café e avisa, com uma passividade assustadora, o que está acontecendo. O protagonista era o cardiologista de seu pai, que morreu na mesa de operação. Para “equalizar” as coisas, ele precisa matar um membro de sua família, caso contrário, os três irão adoecer e falecer lentamente.

Lanthimos valoriza o vácuo entre as falas, esse silêncio torna a tensão palpável e humana. Por mais limitado que Farrell esteja em seu papel, sua angústia, raiva e dor estão ali, perfeitamente trabalhadas a partir de nuances. Cansaço e desespero caminham lado a lado em sua composição. Em um momento, ele está completamente abatido e cabisbaixo, no seguinte, explode. Transitar entre extremos sem alterar a entonação é difícil, requer um controle corporal impressionante, além de muito talento, obviamente.

Pouco tempo depois, o mesmo acontece com Kim. O cuidado da montagem e de Lanthimos nessa cena merece elogios, primeiro por nos ambientar ao espaço, depois por focar no rosto do “alvo” e, por último, destacá-la em meio a vários jovens – Kim fica exatamente no centro do quadro.

Os inúmeros exames e os médicos de diferentes áreas apenas afligem os pais, que, gradativamente, perdem as esperanças. Steven chega a obrigar Bob a parar com a “farsa”, num claro sinal de melancolia e desespero. Anna, que pouco se intrometia, vai atrás de Martin, que transforma o simples ato de comer macarrão em algo perturbador. Sua retórica é firme e maligna, não há brechas para o processo natural.

Repentinamente, a residência graciosa e vivaz vira um hospital. As camas, posicionadas lado a lado, a palidez dos rostos, a ênfase nas paredes azuladas e a escuridão que domina o ambiente conversam com a total perda de energia de Steven. A situação é terrível por todas as óticas, mas a do protagonista é especialmente cruel. A distância do casal na cama evidencia a falta de interesse e a necessidade que o cirurgião tem de se afastar de todos. A trajetória até aceitar o inevitável é longa e extenuante; quando ele percebe que não existe escapatória, é abordado pelas vítimas, que tentam, de alguma forma, sensibilizá-lo.

Bob se negava a cortar o cabelo e, mesmo sem conseguir andar, se rasteja pela casa e faz aquilo que o pai pedia há meses. Kim, por outro lado, se coloca à disposição para o sacrifício: “você me deu a vida e tem o direito de tirá-la”. Sua fala, obviamente, tem o objetivo contrário – quanto mais vulnerável e pura, maior a pena. Anna disponibiliza mais o seu corpo, coloca o vestido favorito do marido e pensa racionalmente: “podemos ter outro”.

O jogo sentimental é um instinto natural de sobrevivência, mais uma prova de que Lanthimos não é sádico gratuitamente – seu conhecimento acerca da natureza humana está presente em sua filmografia inteira.

As lentes grandes angulares, que distorcem as laterais e expandem a profundidade dos cenários, fragilizam os personagens, que ficam pequenos em relação ao espaço. Essa opção conversa diretamente com o arco do protagonista; o que poderia ser uma “muleta visual”, é, na verdade, essencial para explorar o vazio e a claustrofobia enfrentada por Steven em sua completude.

Lanthimos movimenta sua câmera com muita elegância. Seus travellings, além de esteticamente impecáveis, combinam com a poderosa e inquietante trilha sonora.

Por motivos óbvios, não direi o que acontece, somente que o protagonista opta pela escolha mais “justa” e aflitiva possível.

O filme termina numa nota trágica e homérica, deixando o espectador perplexo e abismado com a criatividade do cineasta grego.

Barry Keoghan, o novo Coringa, demonstra uma facilidade incrível para interpretar personagens perturbados, esquisitos e irritantes.

“The Killing Of A Sacred Deer” é uma das principais obras primas lançadas neste século.

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