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Uma fita e um gravador. Algumas palavras e seus significados. “Estrada é um vento muito forte”. “Carabina é um lindo pássaro branco”.

No jantar, um dos filhos pede o telefone para a mãe e ela passa o sal. Quando os irmãos avistam um avião, torcem para que ele caia, não por maldade, pois acreditam que se trata de um brinquedo, não de um veículo que transporta centenas de pessoas.

-O que é uma xoxota?

-É uma lâmpada grande.

Um zumbi é uma pequena flor amarela e adivinhem quem é o avô desses jovens afortunados? Ele mesmo, Frank Sinatra. Após a refeição, a família se reúne e escuta os discos do vovô, enquanto o pai – este foi o último filme de Lanthimos em sua língua nativa – traduz as letras.

Não sabemos a idade dos irmãos, porém, mentalmente, diria que estão na casa dos sete anos. O pai, com medo de que seus filhos se machuquem, proíbe a saída da casa isolada – e estão sujeitos a punições “pouco convencionais” caso saiam da linha. Minto, eles terão esse direito assim que seus dentes caninos caírem, e poderão aprender a dirigir quando um outro, mais forte, crescer.

A curiosidade sexual é natural e o pai, um “educador elogiável”, leva semanalmente a vigia da empresa na qual trabalha para transar com seu filho. O silêncio, o plano estático e a maneira seca que os corpos se entrelaçam não despertam excitação. Lanthimos é um mestre em criar desconforto e o fato dos personagens não terem nome vai ao encontro dos enquadramentos em que não vemos rostos – a absoluta falta de personalidade – e pela entonação incompatível com seus corpos. Não importa o assunto, eles nunca abandonam a postura infantil.

Os pais são os professores, responsáveis por ensinar um vocabulário tão bizarro, que acaba despertando risadas inesperadas no espectador. O controle é absoluto, como se estivéssemos assistindo a um experimento político/social. Até que ponto os líderes podem influenciar e dominar as pessoas? O que é preciso para que o absurdo seja aceito sem contestação ou protestos? A resposta é simples: imbecilizar o povo ao máximo, idiotizá-los para que não tenham a mínima capacidade argumentativa e não consigam dar um passo sem pedir permissão. A imposição é o pesadelo dos corruptos e Lanthimos prepara o sonho molhado de cada um deles em “Dogtooth”.

Por outro lado, o cineasta, com sua abordagem extrema, expõe a importância da liberdade e do desprendimento dos filhos em relação aos seus progenitores. A dependência é necessária até certo ponto, depois vira uma muleta eterna e danosa. Existem pessoas que não conseguem colocar os pés na rua sem antes pedir um dinheiro para a mãe. Não estou falando de crianças a fim de um picolé, mas de adultos, pais de família que balbuciam o termo “mamãe” diariamente. Quando a proteção e o cuidado se tornam excessivos? A ordem natural das coisas funciona em alguns casos, em outros, determinadas arestas devem ser alongadas e moldadas.

Em “Doghtooth”, tudo está errado, virado de ponta cabeça. A comédia e o absurdo caminham lado a lado, pois reconhecemos a jornada e sabemos que, enquanto crianças, só podemos torcer por uma educação decente.

A natureza humana não foge dos personagens. No entanto, a forma como os filhos demonstram essas curiosidades é completamente destrambelhada e inocente. A irmã mais velha percebe que lamber uma região específica do corpo desperta uma sensação curiosa, então testa o mesmo movimento no ombro da caçula. Através de uma chantagem baixa e nojenta da tal vigia, ela descobre o que é uma negociação. A mais velha, por motivos óbvios, é a mais interessada em desvendar mistérios, não à toa, sempre verifica se seu dente canino está mole. Ela não joga um pedaço de bolo para fora da cerca somente por “ser uma criança”, mas para verificar se há algo do lado de lá.

A cena de dança combina perfeitamente humor e perturbação, sendo os gestos corporais, gradualmente intensificados, o elemento primordial para captarmos sua mensagem: ela quer sair. A sequência seguinte apenas ratifica isso e é uma das mais gráficas que já assisti. Lanthimos diz muito com a imagem, afinal, seus personagens acham que um teclado é uma vagina.

Os atores que interpretam os irmãos incorporam brilhantemente o estágio da vida em que estão. A caçula é sutilmente mais infantil que os demais, o do meio assume um equilíbrio entre as extremidades e a mais velha, a partir de olhares um tanto expressivos, gestos efusivos e um comportamento descontrolado é, sem dúvida alguma, o grande destaque. Seu olhar para o espelho – quem assistiu o filme sabe de que cena estou falando – é igualmente calculado e orgânico; assustador e refrescante.

O pai é uma figura horripilante, cuja voz, suficientemente imponente desperta medo no espectador sem que ele esteja no quadro. Seu controle perante o ambiente é impressionante e a calma que tem para disfarçar algo reforça o excelente trabalho de Christos Stergioglou. Ele é a personificação do perigo, não o mundo que está ao redor dos filhos. A mãe segue seus preceitos, no entanto, claramente não concorda totalmente com aquilo, já que, invariavelmente, se situa no fundo do quadro – o que funciona também como uma rima com o muro que cerca os jovens – e está quase sempre cabisbaixa. Ela não discute, aprendeu a aceitar o absurdo.

A residência é tomada pela natureza, gerando um contraste com a natureza humana e criando uma falsa impressão de segurança. Lanthimos utiliza planos abertos para fomentar essa sensação, ao mesmo tempo em que mostra quão presos estão. Em determinado momento, ele realiza um travelling de uma borda da piscina a outra, limitando o espaço daqueles indivíduos delicadamente.

A casa é tomada por paredes brancas, cor predominante também no figurino dos filhos, salientando a condição de seres fragilizados e adoecidos, imersos em um verdadeiro hospício. Nesse sentido, a direção de arte se prova espetacular, pois o branco pode trazer a impressão de paz e calma, certamente calculada pelo pai. Quando não estão de branco, os filhos se cobrem com roupas de tonalidades frias – impotentes e dependentes. O uso da câmera na mão ressalta a imaturidade dos personagens, que brincam euforicamente, assumindo, no fim, a conotação de um desejo intenso e grandioso.

Em um dos jogos propostos pelos pais, os filhos, vendados, devem encontrar a mãe, posicionada no centro da casa, e abraçá-la – o filme poderia ser definido por essa sequência.

E, claro, o gato é o animal mais perigoso que já pisou na terra. Lanthimos não dispensa a violência, ainda mais quando um ser quase alienígena entra num território tão protegido. A forma de assustar o temido felino, ensinada pelo pai, é o puro suco de Yorgos Lanthimos.

Nojento, perspicaz, único, engraçado e perturbador, este é “Dogtooth”, o filme que colocou o cineasta grego definitivamente no mapa.

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