“The Fabelmans” é um filme repleto de camadas e sabores distintos. É engraçado, caloroso, inspirador e melancólico.
Sabemos que a jornada levará o jovem Sammy a “consumar” sua paixão pela sétima arte. No entanto, não fazia a menor ideia de que este também seria um retrato duro e honesto sobre uma família falsamente harmoniosa que se desintegra sem catarses, pelo contrário, com muito respeito e amor.
Burt Fabelman é um engenheiro de computação em ascensão, que vê no sucesso financeiro a estabilidade que sua mulher e filhos tanto desejam, sem perceber que, muito antes das grandes propostas, todos demonstravam ânimo e alegria. Burt é sério e vê nos filmes de Sammy apenas um hobby. Por se tratar de uma obra autobiográfica, é óbvio que Spielberg não caracteriza seus personagens de forma unidimensional. Pragmático e inteligente, Burt quer apenas o bem de todos ao seu redor e é extremamente amável com sua família, sendo presente nos momentos difíceis e sensível ao perceber que certas situações não andarão para frente. Ele adoraria que Sammy seguisse seus passos, acredita em coisas palpáveis, contudo, tem um tremendo orgulho de seu filho. Pode-se dizer que Burt é um homem egoísta, mas suas intenções nunca visam um bem individual, o que demonstra uma certa ingenuidade e falta de diálogo entre seus familiares. Ele caminha em direção a um crescimento na carreira e acaba esquecendo das pessoas que fazem sua vida ser colorida, terminando sozinho, vendo fotos de um passado “distante” e de coisas que poderiam ter sido evitadas. Burt é um homem doído e doce; carinhoso e introspectivo, que precisa abrir os olhos e se afastar um pouco de seus próprios méritos.
Mitzi Fabelman é uma pianista cuja carreira nunca decolou, talvez por medo de se arriscar e ter uma família para cuidar ou até por temer algum tipo de competição com o marido. Sua presença é radiante e fundamental, entretanto, sua fragilidade emocional é notável em diversos momentos, por exemplo, aquele em que ela toca piano e se encontra em uma forte escuridão. Há algo misterioso por trás da personagem. A verdade é que Mitzi ama Burt por suas óbvias qualidades, porém não enxerga mais nenhum tipo de futuro ao seu lado, não à toa, mantém um caso com Benny – melhor amigo de seu marido. É dele que ela deseja estar perto, provavelmente por sua presença ser mais leve e descompromissada, enquanto Burt, mesmo leal e cuidadoso, comandava a casa como um regente, sem dar muito espaço para outras opiniões, drenando, sem perceber, a energia da esposa. Eles representam o embate entre arte e ciência – um é delicado e frágil, o outro é direto e ambicioso.
Dito isso, Steven Spielberg trata a maioria das interações entre a família com um enorme carinho, enfatizando situações corriqueiras e brincadeiras sutis que constituíram sua infância.
Sammy é um jovem passional. Sua primeira reação ao assistir a um filme é marcante e fundamental para o seu arco. Ele carrega o lado artístico da mãe, porém ama muito o seu pai. São relações distintas, uma envolve o entendimento do porquê de certas atitudes, que acabam os unindo e fortalecendo um laço que se torna mais humano. Em contrapartida, a outra é carregada por muito respeito e afeto, mas uma desconfiança por parte do pai, que não enxerga no cinema uma forma de ganhar a vida. Podemos dizer que ambas as relações são muito bem estabelecidas e desenvolvidas, que evoluem com o tempo, ganhando complexidade na medida em que Sammy amadurece e passa a enxergar seu futuro com lucidez.
A dinâmica entre os irmãos também é deliciosa de se assistir. Dá para sentir a honestidade de Spielberg ao retratar sua família e suas irmãs que o ajudam em momentos difíceis. Há também a infância, principalmente os primeiros filmes de Sammy, cujo elenco era formado unicamente pelas irmãs.
“The Fabelmans” é também uma carta de amor ao fazer cinematográfico, desde a forma como conduzir os atores, manusear câmeras com bitolas de diferentes milímetros e montar os filmes manualmente com bastante cuidado. Seja uma gravação sobre uma viagem familiar, sejam as férias escolares, sejam suas obras registradas, Sammy demonstra sempre o mesmo encantamento e paixão. As referências estão por todos os lados e envolvem, em sua grande maioria, John Ford, interpretado por David Lynch em uma ponta espetacular. Spielberg observa cada detalhe, não apenas os filmes, mas os rolos das câmeras, a evolução delas e a reação dos espectadores, que, segundo o próprio, se deparam com algo mágico dentro de uma sala de cinema. O poder das imagens perante as pessoas é extraordinário (para o “bem” e para o “mal”).
Sammy enfrenta fases difíceis, amadurece, muda de cidade e frequenta uma grande escola. Lá, surgem os dilemas mais comuns de um adolescente: garotas, bullying e a dificuldade de se enturmar. Os Fabelmans são judeus, o que é utilizado pelo roteiro, tanto para colocar o protagonista em situações delicadas, quanto para criar humor. Namoradas, decepções amorosas, brigas e uma cena surpreendentemente sensível fazem desta uma das melhores partes do filme, que termina de forma memorável: fechando os arcos, acrescentando complexidade ao relacionamento entre os personagens e dando um ar de esperança que nos deixa com um sorriso no rosto.
A direção de arte segue a trajetória da família, iniciando de forma radiante, com uma casa pequena e simples, mas cheia de vida e perdendo as cores e os móveis ao longo dos anos. Destacaria os pôsteres, os tipos de câmera utilizados por Sammy e os cinemas, que, além de passarem credibilidade, dão uma atmosfera nostálgica ao filme. Os figurinos são um ótimo complemento para estabelecer o período em que a obra se passa.
A fotografia segue uma linha similar. A casa e os ambientes habitados pelos Fabelmans são vibrantes e ressaltam o afeto que nutrem, no entanto, quanto mais próximos do fim chegamos, as cores perdem a vida. É interessante notar que Mitzi é destacada por uma luz forte, enquanto Burt é marcado por tons pastéis – até mesmo no figurino. Há algo muito encantador sobre esse filme e a iluminação é parte fundamental para essa aura deliciosamente nostálgica e doce.
A montagem é responsável por rimas visuais interessantes e por ditar o ritmo do filme com maestria, a partir de saltos temporais precisos. Há uma sequência em especial que é uma verdadeira aula de como criar uma atmosfera pesada através de cortes pontuais.
A trilha sonora combina muito bem elementos alegres e melancólicos. As melodias aparecem nos momentos corretos e elevam a maioria das cenas.
Steven Spielberg realiza algo extremamente difícil. Sua obra é, simultaneamente, um retrato fiel sobre uma família unida que se separa, um estudo de um personagem em pleno amadurecimento e uma carta de amor ao cinema e tudo que envolve a sétima arte.
Sua direção é leve e aprazível, sua principal intenção é nos comover com a força do cinema, mostrar como os filmes são mágicos e, nesse sentido, seus close ups são bastante reveladores. Suas movimentações de câmera são elegantes – a que precede o encontro entre o protagonista e John Ford é fascinante – e sua mise en scéne impressiona, seja para expor a harmonia na mesa de jantar ou para mostrar que Sammy é o elemento chave da trama, em uma cena na qual ele fica exatamente entre o pai e a mãe.
Gabriel LaBelle se tornará um rosto conhecido a partir de agora. Sua performance é segura e seu arco é extenso, sendo necessário demonstrar insegurança, medo, charme, amadurecimento, alegria e encantamento com uma intensidade praticamente igual.
Michelle Williams está espetacular. Sua personagem é passional e carinhosa, mas as constantes mudanças de cidade evidenciam sua instabilidade emocional e infelicidade. Sua relação com Sammy é a chave para o seu reequilíbrio.
Paul Dano oferece uma performance repleta de nuances. Ao mesmo tempo em que é sisudo e intimidador, Burt é um sujeito amável e perdido, que precisa de ajuda. Espero que a Academia finalmente reconheça o seu trabalho.
“The Fabelmans” é o filme mais pessoal de um dos diretores mais importantes da história do cinema. É uma grande jornada, honesta em seu tratamento e genuinamente emocionante. Até agora, é o melhor do ano e, sinceramente, espero que leve a maioria dos prêmios no Oscar.
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