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O cinema clássico hollywoodiano tinha uma rara capacidade de despertar o melhor dentro do ser humano, uma pureza inalcançável.

Julia já foi radiante, no entanto, seu casamento, cada vez mais frio, a transformou numa mulher chorosa e melancólica. O anjo observa e se alegra com a felicidade alheia. Ele está na Terra por um motivo nobre, precisa restaurar a fé de alguém. Henry não compreende a magnitude de seu cargo enquanto bispo. Seu principal objetivo é construir uma suntuosa catedral e, para tal, precisa do aporte financeiro de uma senhora esnobe e arrogante. Ele olha para um símbolo religioso e só consegue pensar no valor comercial das coisas.

Sisudo e perdido, Henry é incapaz de olhar ao redor e perceber a quantidade de pessoas que o amam, se importando com a construção de um templo que, no fim das contas, não significa nada. A fé não está em sermões, frases decoradas e comportamentos pré-estabelecidos, mas no genuíno desejo de trazer algum tipo de esperança e conforto à vida das pessoas.

Henry era adorado por todos em sua antiga capela; hoje, não consegue controlar a escuridão que domina sua residência. Julia chega em casa receosa, se escora em paredes e olha apenas para a carcaça de um grande homem. A distância entre os dois na mesa reflete a atual desconexão e algo precisa ser feito.
Eis que surge Dudley, o anjo encarregado de ser o assistente de Henry, que não acredita em suas palavras e pede por provas concretas e truques baratos.

Que tipo de bispo é esse que duvida de uma presença divina e chega a insinuar que está diante do demônio? As constantes bajulações e negociações fizeram de Henry um sujeito cético e egoísta. Dudley se compromete a ressuscitar sua humanidade. O anjo não quer ajudar na construção da tal catedral, pelo contrário, deseja entender o porquê a imagem do idealizado templo é significativamente maior do que a foto de sua esposa. Em que momento os valores se inverteram? Quando a beleza do cotidiano e a felicidade familiar perderam sentido?

Em vez de investir tempo no inseguro bispo, Dudley decide abrir seus olhos de outra maneira. Ele preenche o vazio de Julia, a acompanha em passeios e a leva para almoçar em seu restaurante favorito. Percebam a diferença entre as mesas – esta é muito mais acolhedora do que a extensa e lúgubre que ocupa a sala de jantar da residência.

Se Debby, filha do casal, é excluída por um grupo de crianças mais velhas, Dudley dá o seu jeito para integrá-la, livrando Julia de maiores preocupações. A primeira vez em que vemos o rosto da moça nitidamente, em um belo close up, é quando o anjo diz coisas das quais ela desacostumara de ouvir. “As únicas pessoas que envelhecem são aquelas que já nasceram velhas”.

Enquanto isso, Henry, sem perceber que sua esposa não está em casa, segue ocupado em reuniões. O plongée reafirma o quão distante da verdade e da felicidade ele está. Wutheridge, professor e amigo do casal, não é um homem religioso, todavia, apesar da inicial desconfiança, nota que há algo de extraordinário em Dudley, algo que não deve ser raciocinado, mas absorvido. Somente Henry tem noção da natureza do anjo e, ainda assim, é o único a não ser “tocado” por suas atitudes.

Em seu alto posto, o bispo se coloca acima dos demais, é demasiadamente frágil para admitir sua insegurança e os ciúmes que sente ao ver Julia feliz. Dudley não está lá para roubar a mulher de ninguém, seu objetivo é trazer luz à vida de pessoas que se acostumaram com a escuridão.

Em uma das mais belas cenas, Dudley conta uma história para Debby. Os dois ficam em primeiro plano e Julia, a empregada e a assistente do bispo, ao fundo, encantadas com sua sensibilidade e pureza. Ele faz com que todos na residência se sintam especiais e lisonjeados. O diretor Henry Koster repete a mesma estratégia visual quando o anjo visita Mrs. Hamilton, a senhora esnobe. Sua mansão, a princípio, ressalta seu senso de superioridade, entretanto, Dudley rapidamente compreende a dor que assola sua alma. Os largos espaços, na verdade, salientam o vazio de um amor perdido há anos. Ele toca a harpa e, novamente, em segundo plano, a vemos completamente impactada pelas melodias compostas por sua única paixão – seu efeito é intoxicante, atrai o melhor que existe dentro de cada um de nós.
A neve, que no início conversava com a situação dos personagens, assume a conotação de calor humano, da essência natalina.

Em um momento mágico, Dudley “convoca” o coral juvenil na antiga capela de Henry e os rege lindamente. Depois, ele convida Julia para patinar, a relembrando de que o paraíso pode vir à terra se quisermos. Todos param e observam os dois deslizando pelo gelo, feito figuras celestiais em estado de êxtase. Sylvester, o simpático taxista, não cobra pela longa corrida e se justifica: “porque você e essa adorável dama restauraram minha fé na natureza humana”.

O chapéu comprado por Julia não é um mero capricho. Dudley sabe que é importante se sentir bonita e a reação da moça é autoexplicativa. Henry decide demitir o assistente, o que ratifica o seu distanciamento dos valores que o levaram ao caminho do amor e da fé. O bispo não rezou pela catedral, mas por uma luz guiadora. Tudo que Dudley fez foi irradiar empatia e alegria, trazendo à tona o melhor de todos aqueles que amavam Henry, escancarando a sorte da qual ele não se dava conta.

O roteiro é tão caloroso e otimista, que o anjo, de certa forma, adoraria ficar na Terra. Dudley construiu o terreno para o bispo dar a volta por cima, abraçar sua esposa, filha e queridos amigos. Seria Henry capaz de enxergar algo tão óbvio? Sua fé, enfim, foi regenerada? “Eu só senti um inexplicável sentimento de felicidade”. O peso dessa fala é enorme, advém de um sujeito perdido no limbo entre religião e poder. Sua catedral era a sua casa, Julia e Debby.

Seu sermão, reescrito por Dudley, não é pragmático ou artificial, vem do fundo do coração, de memórias bonitas e de esperanças revigoradas. O anjo parte para a outra face do universo, seu trabalho foi concluído…

Sutilezas, como, por exemplo, a posição de Dudley na mesa – entre o casal, pois está ali para reunificá-los – reforçam o delicado trabalho de direção, que nega exibicionismos, acreditando em sutilezas e na beleza de situações “simples”.

Loretta Young está encantadora e David Niven encarna o bispo cético com muita propriedade. No entanto, o filme é inteiramente de Cary Grant, que reafirma o posto de estrela máxima da antiga Hollywood. Seu olhar ressoa no espectador de uma maneira diferente, praticamente indescritível. Ele, de fato, parece um anjo, com seu charme, gentileza, empatia, gestos expansivos e sorriso genuíno. A presença de Grant, por si, já é suficiente para deixar o espectador com um sorriso do início ao fim. Tudo soa muito natural em sua composição, sua facilidade para cativar e atingir multidões é imbatível.

“The Bishop’s Wife” é uma obra prima fundamental na formação de qualquer ser humano e remete ao velho clichê de que “não se fazem mais filmes como antigamente”. Infelizmente, é verdade…

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