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A suntuosa residência dos Warriner reflete perfeitamente o comportamento estabelecido pelo casal. Jerry falou que passaria uma semana na Flórida, o que não aconteceu, e Lucy afirma que foi obrigada a passar a noite com seu professor de música, pois o carro dele quebrou. Na frente dos convidados, os dois mantêm uma pose calculada e impressionam pelo bom senso, afinal, confiança é tudo no casamento. Assim que as pessoas saem, o show de ironia e acusações se inicia. Eles não conversam, não se escutam, nem pretendem chegar a um acordo, querem apenas fazer prevalecer os seus pontos de vista. Para os inflexíveis, a saída mais fácil é o divórcio e é exatamente isso o que acontece.

Para oficializar o processo, eles precisam esperar noventa dias. Estamos falando de pessoas que não suportam a própria companhia, que preferem a infelicidade conjugal do que a solidão. Rapidamente, Lucy se relaciona com Dan, seu vizinho, um sujeito simpático e puro. Oriundo de Oklahoma, ele é ingênuo demais para Nova Iorque, não compreende a magnitude do jogo de aparências e esquemas, o que proporciona momentos engraçadíssimos. Jerry se aproveita da inexperiência do “rival”, fazendo o possível para atrapalhar os planos de Lucy. Ele não chama a atenção para si, mas sabe gerar desconforto como poucos. A protagonista faz um esforço para rir e ser gentil com Dan, porém não liga para o rapaz, sendo ele, na verdade, um placebo para o “marido”, a única pessoa que amou.

Jerry entra em cena nos momentos mais inoportunos e, ainda que não tome nenhuma medida extrema, não consegue esconder os ciúmes que sente. Sim, “The Awful Truth” é um filme sobre pessoas que se amam incondicionalmente e não ficam juntas por orgulho – seja lá o que isso significa. Suas demonstrações de afeto são um tanto peculiares, não envolvem cartas, palavras ou flores, mas sabotagens cuja única intenção é manter o outro “disponível”. Quando Lucy diz para a tia que ama Dan, sua torrada queima – a mentira traduzida em símbolos bem-humorados. Disposto a ajudar a “esposa”, Jerry a descreve como uma mulher altruísta, encantadora e com todas as características para adorar a pequena Oklahoma – claro, enquanto cruza os dedos.

O diretor Leo McCarey apresenta um domínio fascinante perante a mise en scéne, armando sequências cômicas elaboradas e elegantes que dependem do posicionamento adequado dos personagens no quadro. Não pensamos que algo acontecerá, Jerry está apenas se despedindo da amada, todavia, Dan toca a campainha, a fim de beijá-la e recitar um poema de sua autoria. Sem tempo, Jerry fica atrás da porta, nas sombras, Lucy entre os dois, segurando as pontas, e o garoto de Oklahoma na frente, se preparando para um momento romântico. McCarey inicia a cena com um plano-conjunto, expondo a situação por inteiro e depois cria “núcleos”: o casal em um momento íntimo e Jerry fazendo cócegas em Lucy, que ri das palavras de Dan. Há uma outra sequência, ainda mais fascinante, na qual a protagonista, lisonjeada com o pedido de desculpas do “marido”, se encontra num campo minado, já que o tal professor de música, responsável pela ira de Jerry, está escondido num quarto. Os detalhes conferidos pelo cineasta com o intuito de estender a tensão e sofisticar a “comédia maluca” são dignos de aplausos – quando achamos que as possibilidades acabaram, ele tira outro coelho da cartola.

O jogo se inverte, Jerry se compromete com uma jovem herdeira e McCarey, novamente, reafirma seu posto de mestre e justifica a sua vitória no Oscar daquele ano. Em vez de perder tempo com o que pouco importa, ele opta por uma sequência agilmente montada, em que vemos Jerry e Barbara em bailes e jogos esportivos, dando um senso de progressão num exemplo perfeito de economia narrativa.

Em meio a raras lembranças amorosas e delicadas, os dois fazem o possível para saírem por cima, ou seja, para provarem que podem seguir em frente sozinhos, com outro par. A ideia, como mencionei, não é somente idiota, mas absurda. Se a reciprocidade é um luxo, por que abdicá-la dessa forma? Não, confiança não é tudo no casamento. Pelo contrário, o fato de sermos traídos por instintos e pela nossa mente é inerente à natureza humana. O ciúme e a bobagem podem, no fundo, ser sintomas de preocupação e afeto – ninguém quer perder algo tão precioso.

Chegou a vez de Lucy sabotar e ela aproveita uma fresta deixada por Jerry. Basta dizer que faltando trinta minutos para oficializar o divórcio, eles se encontram juntos na cabana da protagonista, afastada da cidade. Não é muito difícil prever o que acontece, no entanto, a rima envolvendo as peças de um relógio que entram em suas respectivas portas é fantástica. É melhor falar ou se calar eternamente? O diálogo é a base para qualquer relação e a falta dele é o cerne para a deliciosa loucura apresentada em “The Awful Truth”.

No seu primeiro grande sucesso, Cary Grant oferece uma performance irretocável. Sua capacidade de expressar desconforto e espanto com mudanças na expressão facial e ao desviar o olhar é incomparável. Seu habitual cinismo é fundamental para a caracterização de Jerry e sua química com Irene Dunne, com quem contracenou em outros dois filmes, é hipnotizante.

“The Awful Truth” é uma obra prima tão importante quanto “Bringing Up Baby” e “His Girl Friday”. Talvez seja o melhor filme de Leo McCarey e estamos falando do cineasta por trás de “Duck Soup”, “Make Way For Tomorrow” e “An Affair To Remember”. 

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