Skip to main content

Martin Scorsese dirigiu clássicos “viscerais, como “Touro Indomável”, “Taxi Driver”, “Goodfellas” e “Mean Streets”, no entanto, nenhum é tão violento e cruel quanto “The Age Of Innocence”, na minha opinião, o seu “Barry Lyndon”.

Não poderia iniciar a crítica sem elogiar o brilhante trabalho de direção de arte, que, além de ser dotado de um imenso cuidado, caracteriza os personagens e a Nova Iorque do século XIX com precisão. Os salões suntuosos, as mansões, as porcelanas, os objetos valiosos, as comidas perfeitamente colocadas nos pratos, os enormes arranjos impecáveis de flores e os diferentes talheres postos à mesa não são meros caprichos do diretor. A alta sociedade preza pela perfeição, na apresentação, nos modos, relacionamentos e questões morais. Tudo é uma mera obrigação, um compromisso que aquelas pessoas cumprem à risca. Elas não vão à ópera pelo espetáculo, mas pela representatividade. A maioria ali nem se gosta, porém mantém uma cumplicidade digna de aliados e amigos de longa data.

As famílias não agem por vontade própria, seguem um código de conduta em que o aceitável e o inaceitável são inegociáveis.

A lei permite o divórcio, a sociedade não; as ruas são retas e nítidas, as pessoas não.

Newland Archer está prestes a se casar com May Welland. O matrimônio arranjado é ilegal nos Estados Unidos, mas eles não se conhecem muito bem e fazem parte de duas das famílias mais influentes da cidade. May representa o universo concebido por Scorsese em sua completude. Sua aparência denota uma pureza “intocável”, seu vestido branco é angelical, seus comentários são superficiais, ela não tem nada de relevante a dizer e obedece a sua mãe.

Newland, em contrapartida, enxerga com clareza o mundo que habita e detesta a farsa diária, contudo, se adaptou a viver ao lado de seres que se importam com a manutenção de uma imagem. A presença de Ellen Olenska, prima de sua noiva, mexe com seu coração e o coloca diante de um embate difícil de ser vencido. Newland se acostumou e até aprendeu a se divertir com a artificialidade, às vezes rindo dos outros e de si. Ellen viveu um tempo na Europa, se casou com um Conde que a traiu com prostitutas e é malquista por ter fugido e voltado acompanhada por uma série de escândalos.

“Tenho opinião própria”, afirma Newland para Sillerton Jackson, um especialista em julgar os outros. A fumaça que divide os dois, em um plano conjunto, reforça a discordância. O roteiro denuncia o machismo impregnado nessa sociedade. O protagonista anuncia o seu noivado com o intuito de colocar famílias importantes ao lado de Ellen. A sociedade não aceita o seu retorno e ele faz questão de pedir aos van der Luyden – os mais influentes – um jantar de boas vindas.

Ellen atravessa o salão mudando de cavalheiro, indo na direção de Newland em câmera lenta – não é algo bem visto pelos demais. Ela acredita que fugiu de um pesadelo, que agora está entre amigos. O protagonista sabe que isso não é verdade e, apesar de ter respostas para as suas indagações, concorda com tudo que a condessa diz. Sim, a obediência cega faz parte do jogo e não há muito a se fazer.

Ellen é uma mulher independente e isso incomoda. As pinturas impressionistas em sua casa salientam sua modernidade e personalidade forte. “A solidão real é viver uma vida encenada”. Essa frase ressoa em Newland como um tiro, dói porque ele sabe que sempre foi um ator e que dificilmente sairia da peça. O choro de Ellen o comove, fazia tempo que não via lágrimas genuínas escorrendo de um rosto.

Bem no início, Scorsese realiza um plano sequência espetacular, seguido de movimentos fluidos e exuberantes que camuflam o que está debaixo das máscaras. Nesse sentido, a narração é essencial, responsável por desvendar “as imperfeições” de cada personagem. Scorsese é um perfeccionista e sua apresentação desse universo conversa diretamente com a imagem idealizada pelos “soberanos”.

Quando Newland compra flores para Ellen, o diretor trata o negócio com muita discrição, optando por planos-detalhe, cortes constantes e movimentos suaves.

Se não fosse por sua abordagem íntima, o toque entre as mãos do protagonista e da condessa não teria o mesmo valor. A intensidade está no tipo de enquadramento – planos fechados e abertos não são jogados avulsamente.

Ellen quer oficializar o divórcio, porém, Newland, advogado encarregado no caso, é avisado de que esse tipo de processo só traria problemas para a moça. Eles não ligam para liberdade, nem sabem o significado disso. As palavras doídas e verdadeiras de Newland convencem Ellen. No entanto, ao perceber que está completamente apaixonado e admitir pela primeira vez um sentimento sincero, se vê preso a um labirinto. May decide antecipar o casamento e a condessa, que urgia pela liberdade, continua presa e não tinha a intenção de magoar sua prima e causar um novo escândalo.

O momento mais simbólico e belo do filme é, sem dúvida alguma, o abraço entre os dois. Os corpos não se envolvem convencionalmente, o contato denota uma adoração absoluta, uma paixão ardente e um forte desespero.

Newland se casa com May e embarca na trajetória que tentava evitar. Simplesmente se conforma com uma triste existência. Há uma cena que ilustra brilhantemente a futilidade de sua esposa. Após um jantar, o protagonista relata uma conversa interessante que teve com um francês e que gostaria de convidá-lo para sua casa. “Ele não era um tanto comum?”, pergunta May, provocando no marido uma palpável sensação de desgosto.

Por trás daquela falsa pureza e bondade existia algum vazio, mas Newland ainda não havia levantado essa cortina.

Ellen e o protagonista se contentam com o que podem, encontros secretos e fugas do trabalho. Em uma simples conversa, a partir do Rack Focus – quando um fala, o outro fica fora de foco -, percebemos o quão próximos e distantes estão. Gradativamente, eles se apagam fisicamente, enquanto os pensamentos apenas crescem. “Estou morto há meses”.

As famílias claramente querem se livrar de Ellen e fingem que prezam pelo seu bem e dignidade. Newland chega a citar o embate entre “vislumbrar a vida real” e “seguir com a farsa”, entretanto, o roteiro é bem mais complexo que isso. De fato, não há saída. Admitindo tudo, o protagonista seria apagado da sociedade, perderia prestígio e o seu emprego, já Ellen, seria obrigada a voltar ao seu “querido” Conde.

Mas não importa, Newland quer “salvar” sua vida, já fadada ao fracasso, todavia, May o informa que Ellen retornará à Europa, pois sua avó providenciou sua independência financeira. A fagulha da lareira se apaga, fechando uma bela e triste rima criada no início com o fogo, que representava o amor forte e perigoso. No jantar de boas vindas, Ellen usou um vestido vermelho, no de despedida, um preto – foi engolida pelas convenções, “delicadamente” expulsa.

Nessa ocasião, sublime como todas as outras, é que Newland, abatido e deprimido, percebe que a sociedade era na verdade uma organização altamente cerebral e cruel. Todos sabiam de seu caso com Ellen, inclusive May, que seguia fazendo o papel de jovem pura e angelical, sendo ela a cabeça do plano de “separação”. Newland estava literalmente engaiolado, preso a um futuro desesperançoso. As aparências enganam… que ironia. O título não poderia ser mais apropriado.

Scorsese potencializa essa existência vazia a partir de um movimento circular, no qual os anos passam, ele envelhece, se torna pai e se mantém fiel à esposa.

O desfecho é um dos mais amargos, pungentes e tocantes que já assisti.

O vermelho é a cor mais presente, tendo conotações contrastantes: inveja, violência, paixão e desejo.

A casa do protagonista é marcada por cores escuras, reafirmando sua total falta de perspectiva e desânimo perante o futuro.

A fotografia é esplêndida, a beleza das paisagens é explorada de forma abundante por Scorsese. Os tons frios tomam conta de Nova Iorque, dominada por seres maliciosos e falsos. Emoções são negadas em um lugar no qual a quantidade de talheres é mais importante do que a felicidade alheia. As cores quentes aparecem como um artifício estético efetivo, podendo também simbolizar um momento íntimo entre o “casal” principal. A sequência em que Newland observa Ellen de uma longa distância na praia e a luz reflete em seu corpo resume o seu arco. Ele precisa dela, a ama imensamente, mas não pode tê-la, sempre existirá um abismo no caminho.

O diretor usa plongées para engrandecer e destacar a beleza do universo turvo e danoso constituído por toda a equipe, remetendo a “O Leopardo”, de Luchino Visconti.

Outro momento bastante inspirado, é aquele em que o protagonista lê a carta de despedida da amada e as luzes se apagam, o deixando numa escuridão quase que absoluta – somente seus olhos ficam aparentes.

Scorsese utiliza a câmera lenta recorrentemente e em uma sequência bem significativa, ressalta a vontade da sociedade nova-iorquina. Vários homens andam em uma rua movimentada, com a mesma roupa, realizando o mesmo gesto, seguindo o mesmo trajeto. A padronização e os costumes negam a individualidade, o que fere violentamente seres humanos empáticos e passionais.

Antes de se declararem, Newland e Ellen permanecem sempre de costas. Scorsese os posiciona de maneira que o medo de se expor e de quebrar convenções seja sutil e visível. Sua direção é de uma elegância ímpar.

A trilha sonora é magnífica, eleva a obra sem ser impositiva, sempre delicada.

A ópera é um cenário apropriado para o iniciar o filme, afinal, estamos falando de uma tragédia e o contraste entre o vestido branco de May e o azul de Ellen ratifica a diferença entre as primas.

Michelle Pfeiffer faz da condessa uma mulher, simultaneamente, forte e frágil. Derrubada por um motim sem abandonar suas convicções. Sua vida pode até ter sido infeliz, mas, diferentemente dos demais, ela sabia exatamente o que queria.

Daniel Day-Lewis oferece uma das melhores performances de sua carreira. Educado e imerso naquele ambiente pomposo, regrado e opressor, Newland, ainda que nunca desmanche a imagem de homem da alta sociedade, gradativamente, se torna mais impulsivo. Suas reações variam suavemente entre a felicidade e uma melancolia pulsante. No fim, ele simboliza a imagem de tudo aquilo que perdeu. Seu alcance vocal é fascinante, seu trabalho aqui é diferente de todos os outros que realizou. O tradicionalismo está presente até nos momentos mais emotivos e dramáticos. Sua feição é expressiva, um rosto a ser apreciado e decifrado, repleto de contradições e certezas.

No primeiro parágrafo, mencionei “Barry Lyndon”, de Stanley Kubrick, pois o considero o seu filme mais vistoso e genial. Nenhum dos dois é subestimado, mas pouquíssimos colocariam “The Age Of Innocence” como a principal obra de Martin Scorsese, o que é um erro.

O que você achou deste conteúdo?

Média da classificação / 5. Número de votos:

Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!