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A casa de Miles é dominada por cores frias. Ele joga palavras cruzadas, é atrapalhado e sua roupa denota uma certa decadência. Jack, em contrapartida, vive em uma residência luxuosa, repleta de pessoas e sua camisa simboliza perfeitamente a “crise de meia idade” pela qual atravessa.

Ele está prestes a se casar e passará a última semana livre com o seu melhor amigo, degustando vinhos na Costa Central da Califórnia.

No carro, o tom conveniente se esvai, estamos diante de homens que se conhecem há décadas e que dividem intimidades. Miles é um professor escolar que sonha em ser um escritor, no entanto, todos os seus livros foram rejeitados por editoras. Ele está à espera de uma resposta em relação ao seu último trabalho, que durou cerca de três anos para ser finalizado, mas não demonstra entusiasmo.

Miles é um poço de melancolia e insegurança; um sujeito que se considera tão vazio, fracassado e insignificante, que é incapaz até mesmo de se suicidar. Em algum período de sua vida, ele deve ter nutrido esperanças e idealizado um futuro compatível com suas aspirações, todavia, nunca recebeu um telefonema positivo e foi soterrado a ponto de olhar para si e sentir vergonha. Sua ex-esposa, por quem ainda nutria esperanças de reencontrar, representa mais uma página de dores e amargura em sua trajetória. Ao descobrir que ela se casou novamente, sua depressão é multiplicada. Miles se subestima, é uma vítima de um mundo cujo roteiro parece ter sido escrito em linhas tortas. Sua inteligência e cultura são notáveis, deveriam ter lhe garantido uma sorte melhor.

O protagonista não é perfeito, o que fica nítido na cena em que “pega escondido” dinheiro de sua ingênua mãe e pelos breves relatos sobre o matrimônio. “Sideways” é um filme extremamente humano, que não julga seus personagens por “delitos” inerentes a nossa tempestuosa natureza.

Ao sair para jantar com Jack e duas moças, uma delas, Maya, garçonete de seu restaurante favorito e profunda conhecedora de vinhos, ele mal consegue falar, balbucia, olha para os lados e responde automaticamente. Sua cabeça está na ex-esposa e Payne ressalta isso tirando, gradativamente, Miles do quadro – seu corpo está presente, sua alma não. A montagem intercala esse processo de afastamento com planos bem fechados do protagonista mergulhado em tons vermelhos – dor e paixão -, ligando para a antiga amada.

Esse é um exemplo da enorme amarra que o impede de viver o presente, entretanto, sua dificuldade de se comunicar vai além e é lindamente apresentada na sequência seguinte, em que os personagens vão a casa de Stephanie, par de Jack no fim de semana – depois falarei sobre o ator.

Miles é um expert em vinhos, entende e admira o processo e as particularidades de cada uva. Seu interesse é genuíno, porém se confunde com sua personalidade introspectiva e melancólica. Na verdade, o vinho é sua compulsão, uma espécie de alcoolismo disfarçado, que mascara sua depressão e o ajuda a se distanciar de si mesmo. Por outro lado, as uvas representam, para Miles, um espelho no qual a imagem refletida é complexa e fascinante, não embaraçosa. Maya pergunta o porquê de seu encantamento com os Pinot Noir. “Precisam de atenção e cuidado”.

Sua descrição é tecnicamente impecável e surpreendentemente emocionante. Ele não está falando somente sobre o vinho, está se expondo, admitindo suas fragilidades e dificuldade de se relacionar e se adaptar em ambientes “estranhos”. Enquanto argumenta, Miles, invariavelmente, olha para si, e Maya, subestimada anteriormente por ser uma garçonete, ainda que nunca tenha conhecido um homem tão confuso quanto o protagonista, é uma grande apreciadora de Pinot Noir…

Sua fala, não tão pessoal, mas igualmente bela, propõe uma analogia entre as diferentes fases de uma uva com a trajetória humana.

Sem perceber, os dois estão de mãos dadas e Miles rapidamente volta ao seu estado normal. Sua depressão o transformou num sujeito socialmente inseguro e a maneira como Paul Giamatti demonstra esse incômodo é magistral – o ator arregala os olhos, tensiona o corpo, coça a barba e pergunta onde é o banheiro.

Para tomar coragem, ir até lá e beijá-la, ele passa por um ritual e Payne, empático como poucos, posiciona a câmera sem ultrapassar o limite do protagonista – vemos tudo de uma considerável distância e o plano é razoavelmente longo, salientando o esforço do personagem.

A jornada permite um vislumbre de felicidade, entretanto, é, majoritariamente cruel, levando Miles a diferentes estágios dentro da própria depressão. O descontrole em seu estado puro aparece quando ele derruba uma bacia de vinho na própria cabeça, na frente de várias pessoas e o ceticismo, naquela que talvez seja a cena mais desoladora do filme. Há um vinho especial em sua casa, que acabou de atingir seu pico e o protagonista espera a ocasião certa para abri-lo. Bebê-lo sozinho, em um copo de isopor, numa lanchonete, é um claro sinal de aceitação – os outros progridem e ele estaciona na areia movediça.

Alexander Payne é um cineasta “realista”. Seu desfecho pode ser considerado imensamente otimista. Ficamos com um gosto agridoce na boca, aguardando por uma resposta que nunca teremos, porém convictos de que há esperança para Miles – a cor forte de sua camisa reforça nossa sensação.

Paul Giamatti oferece uma performance repleta de nuances, tão humana, que até aqueles que considerarem o protagonista uma “aberração”, irão, silenciosamente, se identificar com ele. Seus respiros, a forma como desvia o olhar, as ricas e variadas expressões faciais, o trabalho corporal que denota desleixo e desânimo e a entonação vocal embargada, que evoca uma profunda necessidade de se relacionar e o “contentamento” com o fracasso são marcas de uma interpretação meticulosa. A Academia deveria ter sido boicotada por desconsiderá-lo na edição de 2005.

A minha intenção na introdução era apresentar elos opostos, afinal, “Sideways” é um filme de contrastes. Peguem praticamente tudo que usei para caracterizar o protagonista, invertam e vocês terão Jack. Ele não liga se vai conhecer vinhedos, só quer beber e transar. “Vão achá-lo um imbecil”, diz Miles para o amigo após este comentar algo sobre uvas.

Sim, Jack é um imbecil, uma figura patética que não faz ideia do quão ridículo e egoísta é. Ele pensa com o pênis, não com o cérebro, logo, se for preciso, fará declarações e juras de amor para transar com Stephanie. Miles é um homem profundo e miserável; Jack é superficial e bem-sucedido – entendem o que eu quero dizer com “linhas tortas”?

O ator trata essa como a sua “última semana de liberdade”. Não estamos falando de um adolescente, mas de um adulto estabelecido e prestes a se casar. Os pensamentos e anseios de Jack são dignos de um jovem em plena puberdade – a quantidade de camisinhas que carrega na carteira é autoexplicativa. Ele afirma que seu plano é conseguir alguém para Miles, quando, na verdade, essa é uma desculpa para inserir o camarada em suas aventuras sexuais. Seu amigo está ferido e, em vez de ajudá-lo, Jack avisa que não o perdoará se sua depressão estragar sua noite de prazer. Sua mulher manda mensagens, Stephanie acaba descobrindo a verdade e o que interessa é a próxima, seja lá quem for. O sucesso de Jack encobre sua deprimente e decadente existência. Ele não está se casando por amor, mas por ser demasiadamente vazio para encarar a solidão. O tempo passa, seu efeito perante as moças não será o mesmo, então o personagem se amarra. Jack é incapaz de ter sentimentos minimamente complexos. Sua baixa capacidade cognitiva é muito bem trabalhada por Thomas Haden Church, que vai além, conseguindo transformar Jack, por mais canalha que seja, num sujeito digno de compaixão. Claro, há de se enaltecer as risadas que o ator nos proporciona, tornando-o impossível de se odiar.

A química entre Haden Church e Giamatti é espetacular, contagiante a ponto de esquecermos que se trata de um filme e de gargalharmos histericamente. Apesar dos pesares, em nenhum momento duvidamos daquela amizade.

As reações de Jack ao ritual de Miles antes de provar um vinho e ao seu incrível paladar são impagáveis, assim como as do protagonista às canastrices do amigo, capaz de qualquer coisa para se dar bem.

Miles detesta Merlot e Jack, para provocá-lo, diz que, caso Maya e Stephanie quiserem uma garrafa, eles terão que aceitar.

“Se pedirem Merlot, vou embora. Eu não vou beber essa droga”, reage o protagonista raivosamente, num dos melhores momentos do filme.

Falando em contraste, a fotografia varia entre tons azulados e quentes – a depressão e a beleza das paisagens californianas são devidamente exploradas.

Payne, ocasionalmente, adota uma abordagem crua, utilizando a câmera na mão por diferentes motivos: imprimir um intimismo maior e colocar o espectador na perspectiva de Miles – bêbado ou furioso.

O cineasta enquadra o protagonista de costas repetidamente, ressaltando sua personalidade insegura e frágil.

A blusa de Maya na “cena do Pinot Noir”, cuja cor remete a um vinho, reforça o interesse de Miles pela moça e sua importância em um mundo tão triste e frio – os planos, que, gradualmente os aproximam, alcançam um efeito similar. O “tema” dos dois é de uma delicadeza impressionante.

A montagem é ágil, dá um ritmo “episódico” ao filme. A intensidade dos cortes depende do estado do personagem e do que cada dia “pede”. Há um momento no qual vemos planos isolados de Miles, salientando sua monotonia; em contrapartida, em outras situações, os minutos se estendem. O timing cômico e a precisão dos cortes, prosseguindo para o próximo dia, são impecáveis. A montagem também é inventiva ao utilizar a split screen para “separar” os personagens – núcleos opostos e próximos.

“Sideways” é a obra prima de Alexander Payne. Um dos filmes mais espetaculares lançados nos últimos vinte anos.

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