Juliet, David e Alex são grandes amigos que dividem um apartamento com um quarto extra. Após uma série de “pretendentes” rejeitados, eles são convencidos por Hugo, um sujeito no mínimo misterioso, que acaba se suicidando.
Em sua gaveta, uma maleta repleta de dinheiro. Um objeto simbólico, que move o arco dos personagens e que quebra com qualquer clima amistoso, formando núcleos individualistas e egoístas.
Por azar, David é o encarregado a desmembrar o cadáver e a enterrá-lo. Ele é facilmente o mais afetado, o que se torna mais imprevisível, agressivo e distante. Sensato, sua ideia inicial é ligar para a polícia e explicar a situação.
Entretanto, o charmoso e irônico Alex os convence de que aquela é uma oportunidade de fazer o que quiserem, se divertir e relaxar.
Juliet fica no meio do caminho, sabendo a hora de aproveitar o momento e gastar o dinheiro aleatoriamente com Alex e quando precisa recuar e provar para David que está do seu lado.
Eles são jovens com excelentes empregos e uma química contagiante. Não há absolutamente nada que justifique essa atitude. Obviamente, digo isso observando tudo por uma tela, como um paladino da razão. Não se trata de uma questão ética ou moral, é apenas a percepção de que todos ali tinham não só um futuro promissor pela frente, mas também dividiam um laço raro e forte. No decorrer da trama, fica claro que somente um dos personagens se “dará bem” e, mesmo assim, não podemos considerá-lo um “afortunado”.
O filme explora a fundo a questão individual, como cada um é afetado por esse evento.
No fundo, o que todos querem é a maleta para si, é ela que os separa e os transforma praticamente em inimigos que moram juntos.
Nesse sentido, o clímax não poderia ser mais apropriado – a exposição de toda aquela ganância e perda de empatia e humanidade em atos de extrema brutalidade.
O roteiro é bastante hábil ao transitar entre o humor e o suspense. A tragédia é visível somente para os espectadores capazes de enxergar o vazio da maleta. Como David diz no início, amigos são importantes, mas o que deve ser feito quando perdemos a confiança neles? Acompanhamos essa degradação por diferentes óticas e o grande mérito do filme é torná-la sutil.
A direção de arte é espetacular, fazendo do apartamento um ambiente rico em cores e espaços contrastantes. Temos o amarelo – quente – e o azul claro – frio. Percebam que Alex, invariavelmente é associado à primeira cor e David, à segunda. Juliet se encontra exatamente no centro, se movendo de acordo com seus interesses, o que se torna mais nítido no terceiro ato.
O roxo, presente no quarto de Hugo, é uma cor expressiva e uma de suas conotações envolve justamente o suicídio.
O vermelho está por todos os lados.
Perturbado e ansioso, David mal consegue comer e se tranca no sótão, marcado por uma escuridão absoluta, que conversa com sua condição mental. A pequena e cinzenta sala em que trabalha reforça a sua introspecção e rigidez, transgredidas no momento em que ele aceitou as condições impostas pelos amigos.
A fotografia é um importante complemento, diminuindo, lentamente, a luz, ressaltando o fim das amizades, a mudança na personalidade dos três e um forte clima de incerteza.
A montagem praticamente dita o ritmo do filme, expondo a dinâmica inicial explosiva e divertida, depois servindo à narrativa como um elemento essencial para o suspense e a violência – da jovialidade a um tom pesado. Os cortes certos nos ajudam a entender que existem pessoas atrás de Hugo e o final só é tão efetivo graças a intensidade frenética da montagem.
A trilha sonora é extremamente sugestiva, indicando que algo de errado está quase sempre prestes a acontecer.
Danny Boyle nunca mais alcançou esse nível. Sua composição de quadros é brilhante, principalmente por enfatizar a gradativa distância entre os antigos amigos. Sua prioridade são planos curtos, afinal, “Shallow Grave” é um filme intenso, sobre dinâmica, confiança e o fim de uma relação. Os personagens se movimentam espontaneamente pelo apartamento, dando um tom realista, íntimo e que, de certa forma, nos aproxima deles. Sabemos exatamente quem eles eram e quem se tornaram.
Há uma série de planos específicos que merecem um destaque, como, por exemplo, o plano geral no momento em que Alex joga o carro de Hugo no lago, que remete à liberdade, no entanto, o estouro do champanhe, que sucede essa cena, tem um duplo significado: o prazer do “agora” e o fim agonizante. Boyle utiliza planos-detalhe e close ups para potencializar a tensão e tornar a violência mais brutal. A câmera na mão e o longo plano que precede o clímax são formas bastante eficientes de nos tirar da zona de conforto, salientar a claustrofobia dentro do apartamento e mostrar que as coisas saíram do controle. Seus elegantes movimentos de câmera elevam o suspense e o uso recorrente de plongées e contra plongées pode ser interpretado de diversas maneiras. O primeiro ângulo está ligado a um sentimento de culpa e de um julgamento divino, enquanto o segundo, ainda mais quando é relacionado com círculos, tem a ver com o ciclo da vida, no caso, o fim da amizade e da própria existência para alguns.
Devo admitir que o desfecho, no qual um tenta ser mais inteligente que o outro é delicioso de se assistir e que o final inesperado foi muitíssimo bem-vindo, exatamente por “beneficiar” o personagem que parecia estar mais próximo de sua sanidade mental. A música escolhida casa perfeitamente com o tom “cômico” e o contraste entre as imagens do crédito e a última cena – bela rima com o início – me deixaram boquiabertos, sem qualquer tipo de reação.
Christopher Eccleston oferece uma performance interessante. Fisicamente forte, David é psicologicamente frágil. Ele é introspectivo, não admite que ama Juliet e se vê transformado justamente por não conseguir lidar com o tamanho de sua atitude. Passamos a sentir medo e a “respeitá-lo”. Seu arco exige uma significativa mudança corporal e na entonação e Eccleston merece elogios.
Kerry Fox é sedutora e calculista. Sua interpretação passa basicamente por sua expressão facial, enganando David e Alex. Sabemos que Juliet está planejando algo e a atriz se encaixa muitíssimo bem como esse “terceiro elemento”.
Estaria sendo injusto se não desse um destaque maior para Ewan McGregor, que exala charme e carisma durante os noventa minutos com uma naturalidade impressionante. Seu personagem é, simultaneamente, ingênuo, imaturo e esperto.
“Shallow Grave” não é apenas o melhor filme de Danny Boyle, é uma das melhores estreias da história do cinema.
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