Carol é uma mulher comum. Dona de casa, sua rotina é bem explorada no primeiro ato e inclui idas ao salão de beleza e a aulas de dança, decorar a residência e receber o seu amado marido. Há uma certa mecanização em tudo que vemos – o sexo talvez seja o melhor exemplo desse vazio.
A protagonista não se sente bem, parece distante do convívio social e apresenta sintomas estranhos. Ela vai ao médico, que apenas reafirma que sua saúde está perfeita. Carol acredita ser alérgica a toxinas, fumaça e a qualquer tipo de produto químico que os seres humanos entram em contato diariamente. A estranheza, gradativamente, piora, acarretando convulsões e sangramentos nasais sem qualquer explicação aparente.
A princípio, Greg, seu marido, tem dificuldade em lidar com a fase de Carol, no entanto, percebe que precisa acolhê-la e acaba confundindo proteção com desatenção.
As palavras do médico são praticamente ignoradas, levando a protagonista a buscar outras alternativas para a sua doença. Ela, então, decide que não pode continuar vivendo numa cidade grande, consumida pela poluição, e se muda para um lugar chamado Wrenwood, feito sob medida para os adoecidos.
Todd Haynes pode até acreditar que os meios urbanos chegaram a um nível de sujeira e toxicidade insustentável, entretanto, sua obra claramente não é sobre isso, mas sobre a dificuldade que os seres humanos têm em admitir e perceber que não estão mentalmente saudáveis. Estresse e psiquiatra são termos mencionados ao longo do filme e Carol, em nenhum momento, leva a sério a segunda opção. Pessoas ansiosas e com fortes crises de pânico simplesmente não conseguem olhar para si e dizer: eu sou o problema e tenho que resolver isso urgentemente. Elas vão atrás de todos os tipos de médicos possíveis e obviamente não encontram respostas. Em “Safe”, Haynes correlaciona a ansiedade com a falta de um propósito na vida e com uma existência baseada em convenções sociais banais. Precisamos de algo que nos coloque numa espécie de radar, nos mantenha ocupados e o diretor não poderia ter escolhido uma personagem melhor para realizar esse brilhante estudo. Carol é o retrato de uma sociedade retrógrada, na qual as mulheres cumpriam funções básicas e, de certa forma, fúteis. Na contemporaneidade corrida e estimulante, se manter trancada em casa, fazendo basicamente as mesmas coisas, sem qualquer tipo de objetivo ou sonho, pode te levar à insanidade. O que alguns espectadores talvez não entendam é, que, sim, crises de pânico levam a sintomas físicos, como, por exemplo, sangramentos nasais e convulsões. Por mais triste que seja, o roteiro de Haynes é extremamente sincero. Ele nunca leva a protagonista ao caminho da regeneração, apenas ao da degradação, que se camufla de salvação. O Wrenwood Center é, nada mais nada menos que uma terrível zona de conforto, onde os pacientes não melhoram, nem descobrem o porquê de estarem se sentindo mal. Os responsáveis criam um ambiente controlado e seguro – na contramão da realidade – e acostumam os pobres coitados a se sentirem melhor, com a falsa impressão de estarem curados. Tudo bem, eles deixam o pânico de lado, mas e quando retornarem à sociedade, ao convívio social e à vida urbana? Como reagirão? A resposta é simples: voltarão ao estado anterior, pois não enfrentaram suas angústias, apenas se esconderam por um período, relaxaram e acreditam que estão bem.
Em determinada cena, o líder do “retiro” diz que não lê mais o jornal, pois não precisa de notícias catastróficas e frases desanimadoras. Ou seja, ele incentiva seus pacientes a se desligarem do que está acontecendo, logo, de suas famílias. O que há de bom e sincero nisso?
Não existem vilões, somente seres mentalmente perturbados que, infelizmente, não conseguiram se dar conta do que estava acontecendo e optaram por uma saída aparentemente fácil, que não os obrigue a enfrentar a depressão e as crises decorrentes dessa situação.
Viver em um mundo fantasioso é um atestado de covardia e falta de ajuda profissional. Me desculpem, mas não há fumaça ou toxina capaz de fazer alguém se comportar daquela maneira. Nossa mente é, ao mesmo tempo, nossa maior aliada e pior inimiga, e Haynes é muito preciso ao sinalizar isso sem alarde.
A direção de arte é essencial. O mundo de Carol é frio e melancólico. A mansão é cercada por tons pastéis e passa uma certa solidão por ser tão grande. Os porta-retratos salientam o seu lado familiar e “normal” – todos estão sujeitos ao “mal do século”. O iglu, onde ela dorme em Wrenwood, sintetiza brilhantemente o seu presente e o seu futuro – sem vida, vazio e claustrofóbico.
A fotografia segue uma linha similar, abusando do azul, do verde e do cinza, cores também presentes no interior da casa – principalmente as duas primeiras.
As paisagens montanhosas e desérticas de Wrenwood são belas e remetem a uma liberdade, que pode também ser vista como uma enorme prisão de morros que impedem o real progresso dos pacientes.
A trilha sonora é a grande responsável pela atmosfera tensa e, muitas vezes, aterrorizante, conversando diretamente com o design de som, que potencializa barulhos e ruídos cotidianos, aproximando o espectador de Carol.
Todd Haynes é um diretor fascinante e sua principal assinatura aqui é a distância. Mantendo sua câmera longe dos personagens, ele assume o distanciamento da protagonista perante sua família, seus amigos e a realidade. Percebam que, mesmo quando Carol demonstra algum sinal de melhora, Haynes não muda a abordagem, pois ela advém de um placebo, um perigoso regresso. Seus travellings são especialmente marcantes por conseguirem transformar situações casuais, como uma festa entre amigas, em um verdadeiro pesadelo. Em outra cena, o cineasta opta por um dolly zoom extremamente sutil, reforçando a desorientação da protagonista. Sua movimentação de câmera também enfatiza a banalidade do cotidiano de Carol, que é obrigada a acompanhar o marido em jantares de negócios. Há uma cena em que uma camada de fumaça a “persegue” e, em vez de manter uma estabilidade, ele emula as curvas e a respiração ofegante de Carol. O último plano é assustador e cruel.
Julianne Moore oferece a performance de sua carreira. A voz retraída, a lenta desconexão com o meio que a circunda, os olhares perdidos e o rosto apavorado são marcas de uma atriz talentosa, que estudou a fundo o seu papel. Pessoas mentalmente instáveis têm vergonha de se expor, de dizer o que realmente estão sentindo e essa sensação é palpável na caracterização de Moore, cuja dor vem do peito. Seus surtos, que poderiam soar caricatos, são muito bem trabalhados pela atriz, que esbanja fragilidade e medo. Carol abdicou de certos desejos e encontrou em crises acentuadas de pânico o “entusiasmo” que faltava em sua vida. A frase é sarcástica, porém real e, como mencionei, o mais deprimente no arco da protagonista é a falsa impressão de que tudo vai se resolver.
“Safe” é uma obra prima dura e contundente, cuja compreensão acerca de crises de ansiedade e pânico e a inteligência do título impressionam.
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