Como mencionei em outros textos, existem filmes que moldam a paixão de um crítico pelo cinema. Eu poderia citar alguns da última década que realmente mexeram comigo, mas nenhum se compara a “Little Women”, uma obra delicada e atual, brilhantemente interpretada e conduzida pela diretora mais promissora da atualidade.
Organizado em diferentes linhas temporais, “Little Women” é uma aula de como realizar rimas entre passado e presente, além de impressionar pelo cuidado da fotografia e da direção de arte, que caracterizam esses períodos com tons, paletas de cores, objetos, figurinos e atmosferas distintas. Podemos ver praticamente a mesma cena duas vezes, sendo a primeira, um sopro de esperança, e a segunda, uma notícia tristíssima. Laurie não gosta da relação entre Amy e Fred Vaughn, no entanto, foi justamente ele que os uniu alguns anos atrás. Gerwig volta a trabalhar com situações de ação e reação, por exemplo, quando Jo corta seu cabelo – uma atitude digna para ajudar no tratamento de seu pai – e, logo depois, chora escondida por estar se achando feia.
“Little Women” tem uma narrativa audaciosa, sendo a montagem sua principal aliada a fim de caracterizar e dar profundidade ao arco dos personagens. O passado é tomado por cores quentes, paisagens exuberantes, figurinos simples, porém chamativos, e lindas decorações. A casa das March, mesmo pequena, é um núcleo de afeto e carinho, não apenas pelo que foi mencionado acima, mas, principalmente, pelas interações entre as irmãs e a mãe, que, apesar de terem personalidades distintas, se amam incondicionalmente e mantêm uma dinâmica deliciosamente hiperativa e honesta, que leva o espectador a sorrir.
A residência de Laurie, o amigo das irmãs, é uma mansão, onde vive com seu melancólico tio e um tutor. Apesar de enorme, a casa se assemelha a um museu, seja pela falta de cores, seja pelo excesso de livros e quadros, seja pela condição escultural de seus moradores. Esses contrastes são fundamentais e ficam ainda mais interessantes com o surgimento do presente. Adultas, as irmãs abandonam a antiga casa, habitada agora apenas pela mãe e por Beth, que sofre de uma terrível doença. Tanto Nova Iorque, quanto Londres, são marcadas por tons frios. A direção de arte segue a mesma linha, transformando ambientes que um dia foram exemplos de otimismo, em lugares tristes e claustrofóbicos. Os figurinos, que prezavam pela personalidade, seguem o padrão angustiante do presente – em vez de vermelho, verde e rosa, vemos azul claro, cinza e preto.
Meg sempre quis frequentar bailes e se casar com um homem rico. Ainda que tenha amadurecido com o tempo e se apaixonado por um sujeito honesto e humilde, sua dor é enorme ao ver uma mulher a provocando por não ter condições de bancar um tecido caro. Ela acaba comprando e magoa John ao dizer que não aguenta mais ser pobre. Meg tinha idealizações, mas seus objetivos eram outros e admitir que eram menores do que ela imaginava não é uma tarefa simples.
Beth, a mais quieta e tímida das quatro, toca piano muitíssimo bem e chama a atenção do tio de Laurie, que havia perdido sua filha e guardava em um quarto um instrumento musical urgindo para ser usado. O laço entre os dois é bonito, envolve a dificuldade de enfrentar o luto e encontrar em uma doce jovem uma espécie de conforto. Beth se encanta com os presentes e o cuidado que Mr. Laurence demonstra. Infelizmente, ela é a personagem mais trágica do filme e impressiona pela maturidade no fim da vida.
Amy, a princípio, se parece com Meg, no sentido de admirar luxos e extravagâncias, entretanto, seu único desejo é andar com suas irmãs, principalmente Jo, pela qual ela tem uma imensa admiração, mesmo carregando algumas mágoas. Amy considera Jo a menina mais inteligente, bela e interessante do mundo, contudo, é apaixonada por Laurie, que, por sua vez, carrega um tremendo afeto pela protagonista. Amy sempre esteve na sombra de Jo, o que a machucou e criou uma silenciosa competição entre as duas. No passado, ela é retratada como imatura e boba – uma criança comum -; em contrapartida, no presente, sua noção sobre o amor, a posição das mulheres em um mundo machista e do casamento como um acordo financeiro é bem clara. Em Paris, estudando artes, Amy descobre que não tem talento suficiente para ser extraordinária e guarda um sonho um tanto irreal: se casar com aquele que ama. Diferentemente de Londres e Nova Iorque, a capital francesa é tomada por cores quentes. Dito isso, o ateliê de Amy tem um quê de opressivo e suas roupas soam socialmente impositivas.
O mesmo vale para Laurie, cujo figurino segue um padrão melancólico. Ele é o garoto da história, logo, é o que vai mexer com os corações e, dependendo de sua personalidade, será o que mais sofrerá. A verdade é que Laurie só deu atenção para Amy no momento em que precisou esquecer o passado. Sim, os dois ficam juntos e ele passa a impressão de amá-la genuinamente, no entanto, as almas gêmeas do filme são Laurie e Jo, que, desde a primeira troca de olhares, demonstram uma rara intimidade. A cena da dança, além de linda, é a maior prova de que os dois combinam e se enxergam fora da “bolha”.
O roteiro desenvolve esse relacionamento com propriedade, indicando que eles se amam, mas de formas diferentes. Laurie é o jovem solitário que, repentinamente, se depara com um grupo de meninas radiantes e se apaixona por uma delas. Ele é charmoso, tem os seus truques e é desarmado quando vê Jo. Laurie está quase sempre perto de dizer o que sente, contudo, suas emoções são procrastinadas até o momento mais desabonador e potente do filme. Enxergamos uma química incrível e torcemos pelo casal, entretanto, no fim das contas, nem toda obviedade é correta e o desfecho casa perfeitamente com a transição e o amadurecimento dos personagens.
Jo é linda, de longe a figura mais hipnotizante da história e a que carrega o principal arco. Na juventude, ela acredita que os relacionamentos representam o fim da liberdade e o início de um longo período de infelicidade. Jo não entende a felicidade de Meg ao se casar e tenta convencê-la a fugir. Seus textos e peças de teatro eram a alegria da família March e, apesar do forte temperamento, ela é doce e sabe quando a raiva sobe a sua cabeça, só não tem ideia de como controlá-la. Jo é a personificação da jovem livre, encantadora, inquieta, inteligente e independente. Ainda que não se importe com sua aparência, são as cores de seu figurino e seu rosto que chamam a atenção do espectador. Por viver em um ambiente tão acolhedor, Jo não reage bem a críticas e praticamente agride Friedrich, um generoso e honesto crítico que admite o talento da jovem, mas afirma que seus textos não são bons, pois faltam com a sinceridade, sendo apenas uma forma fácil de ganhar dinheiro.
De certa forma, ele está certo, porém, diante do contexto geral, Jo estava sobrevivendo em um mundo dominado por homens que querem ler histórias sobre mulheres que se casam ou morrem. Seus últimos dias ao lado de Beth, observar o casamento de Meg por outra ótica e perceber que havia perdido Laurie de vez para Amy são situações fundamentais para o seu amadurecimento enquanto mulher e escritora.
“As mulheres têm mentes e almas, não apenas corações. E têm ambições e talento, não apenas beleza. E estou farta das pessoas dizerem que as mulheres só servem para o amor. Mas estou tão solitária!”
Sua resposta para a proposta de Laurie soa honesta, mas até quando isso se sustenta?
Ainda temos a mãe, uma figura acolhedora e amável, que faz de tudo para esconder sua melancolia, não só pelo fato do marido estar numa guerra, mas em relação à vida de modo geral. Seu diálogo com Jo, no qual diz que sente raiva praticamente todos os dias de sua vida e a explica como aprendeu a lidar com essa emoção é um dos melhores do filme.
A trilha sonora é delicada e marcante. Alexandre Desplat nunca esteve tão inspirado.
Greta Gerwig parece uma veterana. Seus planos gerais são lindíssimos e a capacidade que ela tem de criar núcleos dentro de uma sequência, como a da praia, por exemplo, é formidável. A diretora concebe uma atmosfera afetuosa dentro de uma pequena casa e, invariavelmente, utiliza planos longos, que conversam com a dinâmica hiperativa e acolhedora entre aquelas pessoas. Seu uso de câmera lenta é bastante expressivo, sempre elevando o romance. A mise en scéne no ateliê de Amy é interessante, pois, além dos tons frios, a desorganização dos objetos apresentados no quadro confere uma sensação de melancolia. Não é Beth quem deita no colo de Jo pedindo ajuda. As posições se invertem em uma clara demonstração de medo e aceitação de algo extremamente doloroso. Gerwig controla o tom de sua obra com maestria e merece elogios por nunca perder a mão.
O elenco inteiro é fenomenal. No entanto, gostaria de exaltar a performance de Saoirse Ronan, que transita perfeitamente entre a jovem rebelde e impulsiva e uma mulher melancólica, magoada e forte, que luta pelos seus sonhos e os alcança. Ela é charmosa, faz muito com olhares e trabalha bem a corporalidade. Ronan é a presença central e primordial dentro de uma trama movida por personagens fascinantes.
“Little Women” é um lindo retrato sobre o amadurecimento dessas adoráveis mulheres. Uma obra prima que homenageia a ambição feminina e não mede o tamanho de nenhum sonho. Eu poderia ficar mais três horas apenas observando as interações entre as irmãs March.
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