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“Le Bonheur” é um filme sobre a felicidade. Uma descrição que poderia soar simplista, se o texto de Agnès Varda não fosse tão complexo e espetacular. Passeios pela natureza, fazer amor, cuidar dos filhos, almoçar com a família, trabalhar e enxergar no cotidiano uma repetição prazerosa e preciosa. François tem tudo isso. No entanto, quando precisa ir ao correio, se depara com Émile, por quem rapidamente se apaixona e estabelece um laço tão poderoso quanto o que tem com Thérèse, sua esposa. “Le Bonheur” é uma obra sobre adultério ou machismo? Não, é muito mais profunda e interessante. O protagonista simplesmente expandiu sua felicidade, que já era notável e, em nenhum momento, é injusto ou desonesto com seus pares, pelo contrário, expõe o que sente com uma honestidade poética e objetiva. Para Émile, ele diz que a conheceu depois, explica as semelhanças e as diferenças entre as relações e porque as ama igualmente. Para Thérèse, faz uma bela analogia envolvendo uma macieira. É como se algo extraordinário fosse duplicado, o fazendo mais feliz que qualquer pessoa. A questão não é o homem que se aproveita das oportunidades e explora as moças. Seu estado as contagia, o que fica evidente quando a esposa, tendo nas mãos o futuro do protagonista, se alegra ao invés de se entristecer.

De certa forma, desejamos aquilo que François tem. Em contrapartida, não podemos negar o choque, pois, como seres humanos, sabemos o que a vida nos reserva – a mistura de emoções que nos torna complexos, misteriosos e indecifráveis. François vive num estado de pura irrealidade, uma felicidade leve, fácil e grandiosa. Se por um lado, as atuações e a condução de Varda são naturalistas, as locações, a direção de arte e a trama soam um tanto artificiais. A verdade é que habitamos um universo tão distinto e cruel em relação àquele – culpa nossa, diga-se de passagem -, que dizemos coisas do tipo. Não há nada de artificial nesse filme – a inveja e o esplendor nos chacoalham. Diria, inclusive, que sua simplicidade nos impressiona. Somos apresentados a uma realidade “ideal” e, no fim, somos pegos de surpresa. A diretora adora sua criação, mas entende que os seres humanos foram destinados a um único tipo de felicidade, que não pode ser multiplicada e que se mistura constantemente com sentimentos melancólicos. Nossa trajetória é baseada em altos e baixos, alguns conseguem se desvencilhar de obstáculos, outros não. François não deixa de ser feliz, mas aprende a sofrer e aceita que o que tinha no início, é o máximo que pode alcançar. O filme começa e termina da mesma forma…Será?

A idealização não é um crime, é um direito universal e imaginar um mundo tão belo, genuíno, gracioso e alegre como o concebido por Varda, é normal. Quem sabe? Nada é impossível. As coisas simples são mágicas. Encontrar a beleza no casual é mais difícil do que aparenta e a linha entre a tristeza e a alegria é tênue demais para que isso não seja compreendido.

“Le Bonheur” é uma verdadeira explosão visual. A natureza é o cenário principal e suas variadas cores estão presentes nas roupas, nas casas e em detalhes sutis – tudo aqui é uma extensão das paisagens. Os vestidos de Thérèse são floridos e os de Émile, vivos e variados – ambos abertos, assim como suas mentes e corações. François aparece de vermelho – amor – e amarelo – simboliza seu arco de forma brilhante -, todavia, as cores que marcam o personagem são o azul e o verde. A primeira está associada, simultaneamente, ao afeto que nutre por Émile e ao cotidiano que, por mais pragmático que seja, não cansa de encantá-lo – as paredes de sua casa são azuis e não simbolizam a melancolia normalmente associada à cor, mas o conforto e a alegria que encontra no “óbvio”. O verde, por sua vez, faz do protagonista uma figura ambígua, no entanto, rapidamente notamos que está ligada ao verde do campo e ao seu caráter incorruptível.

A direção de arte é responsável por criar espaços exuberantes, tomados por cores lindas, fortes e que salientam as emoções dos personagens. Tirando o terceiro ato, em que enxergamos tons escuros, o filme é uma pintura áudio visual. O branco denota pureza, descartando a ideia de traição. Na sequência em que François explica a situação para Thérèse, eles não estão em um ambiente claustrofóbico e fúnebre, estão jogados na natureza ensolarada. A arquitetura das casas é singela – pequenas e apertadas. Varda, em determinado momento, opta por um plano-conjunto que mostra a cozinha e a sala da família, ressaltando a felicidade que aquelas pessoas têm em estarem juntas – não é um incômodo.

Quando o protagonista e Émile saem pela primeira vez, ficam entre dois cafés. Um é azul, o outro, vermelho e, obviamente, optam pelo segundo, afinal, François já tinha estabilidade no matrimônio. A cor quente reforça a ideia de algo novo, ainda que não seja mais forte do que aquilo que já tinha.

Varda é uma grande documentarista e sua abordagem, até em suas obras ficcionais, é extremamente suave, empática e delicada. Rostos estranhos dizem algo e a opção por quadros abertos é fundamental para que possamos observar o funcionamento daquelas relações. Varda não se limita a um estilo narrativo. O primeiro encontro, por exemplo, é marcado por cortes efusivos, que nos direcionam ao pingente de coração no cordão de Émile, ao casal atrás de François, vestido de vermelho e rosa, e que termina num plano fechado, que os aproxima sem que nada expositivo seja dito. Quando os dois se encontram na casa da moça, jump cuts saltam da tela, expondo o nervosismo deles e o amor que nutrem um pelo outro – cortes emulam as batidas de um coração ansioso.

A sequência mais poética e romântica também se vale de jump cuts e de planos-detalhe que exaltam a intimidade, o afeto, o corpo humano e todas as suas curvas. Por que Varda repete os mesmos enquadramentos repetidas vezes na trágica cena? É a forma mais efetiva de enfatizar sofrimento e dor – François não sai do lugar.

Destacaria também uma panorâmica sensacional, na qual várias pessoas dançam e trocam os pares – prestem bem atenção, a história está ali, em sua delicadeza e força.

Os planos abertos conversam diretamente com a extraordinária fotografia – um verdadeiro deleite – e com os distintos e igualmente raros relacionamentos que François mantinha. O natural é ter uma mulher, então porque o filme se passa, majoritariamente, na natureza? Varda adorava paradoxos e seu filme nos coloca para refletir além de convenções sociais. Ela prioriza os sentimentos, o diálogo, o amor e a alegria, deixando claro que, de modo geral, estamos destinados à “normalidade”.

O desfecho é, ao mesmo tempo, denso e compacto; poético e objetivo; belo e triste. O uso das cores certas, a montagem, que dita o ritmo de uma forma sensacional, a potente trilha sonora – não poderia deixar de elogiá-la. Sua importância na trama é inestimável – e a leveza da câmera de Varda, que fecha o espetáculo no momento perfeito, fazem deste um final inesquecível.

Querem uma prova de que “Le Bonheur” é uma pintura de oitenta minutos? Os flashes de cores que acompanham praticamente todos os cortes.

A Nouvelle Vague é o movimento mais importante da história do cinema e esta é uma de suas obras primas mais influentes, vistosas e apaixonantes.

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