Billy Wilder é um dos diretores mais importantes e geniais da história do cinema. Sua filmografia fala por si e, ainda assim, ele consegue surpreender com “pequenas pérolas” como “Irma La Douce”, na qual esbanja toda a sua sensibilidade para trabalhar com gêneros distintos, principalmente a comédia – muitas vezes absurda.
“Irma La Douce” é um filme de contrastes. A fotografia e a direção de arte optam, simultaneamente, por prédios decadentes, ruas escuras e locações e roupas coloridas. Mesmo se passando no submundo de Paris, tomado por prostitutas e cafetões, Wilder deixa claro que esta é uma comédia tão radiante quanto sua protagonista, caracterizada por um verde que a destaca em relação às demais.
Irma mente para os clientes para obter uma gorjeta maior, mas é explorada e menosprezada por seu “patrão”, que fica com a maioria do dinheiro. O modus operandi do “estômago de Paris” é bem estruturado: a polícia evita fazer vista grossa nos bordéis, recebendo, em troca, uma quantia generosa dos cafetões. Todos ali sabem bem como as coisas funcionam, menos Nestor Patou, policial novato que chega na região de forma ingênua, demorando a entender o contexto e que o hotelzinho à sua frente servia à profissão mais antiga do mundo. Irma é a moça que mais chama a sua atenção, por seu jeito mais discreto e beleza sutil.
Quando Patou percebe a real natureza daquele ambiente, decide chamar uma patrulha e prender todos os envolvidos, incluindo, desastradamente, o seu próprio chefe, que estava entre os clientes. Acreditando, a princípio, que estava realizando um ato heroico, Patou é demitido. Desiludido, o personagem acaba se aproximando e aceitando o submundo. Existe uma hierarquia entre os cafetões e, em uma das melhores cenas do filme, na qual Wilder combina brilhantemente elementos de ação e humor, Patou vence o líder e se torna o rei do pedaço.
Irma logo se encanta pela forma que ele a defende e também se apaixona, iniciando a relação que dita o ritmo e o tom do filme.
O início é engraçado pelo contraste entre os dois. Irma é extrovertida e Patou é tímido. Ela dorme pelada e ele não sabe muito bem como reagir a uma mulher se despindo em sua frente. Wilder nunca mostra a protagonista nua, colocando o espectador na pele de Patou.
Irma não quer que seu namorado trabalhe, quer lhe dar o maior conforto possível e apresentá-lo para suas colegas como um exemplo de elegância e beleza. Surge, então, uma das questões mais complexas do filme. Para realizar tal desejo, Irma teria que trabalhar ainda mais, ou seja, transar com mais homens. Tomado pelo ciúme, Patou, o ex-policial tímido e tranquilo, vai se transformando em um homem tenso, agressivo e meio biruta.
Apaixonado por Irma, Patou cria um personagem, se disfarça de “Lorde X”, um aristocrata inglês, que se torna o cliente especial da protagonista, fazendo-a desistir dos demais. Irma passa a ter dois homens e ambos são Patou.
No primeiro encontro, ele inventa histórias mirabolantes e faz de “Lorde X” uma mistura de Peter O’Toole e Laurence Olivier. Para bancar o seu disfarce, o protagonista pega um empréstimo com o barman – uma especie de “faz tudo” -, mas logo percebe que terá que arranjar um emprego a fim de prolongar a farsa. Trabalhando nas madrugadas, Patou passa a ficar mais ausente e indiferente às felicidades de Irma, que acredita que o seu amor está tendo um caso.
A situação se desenrola a ponto da protagonista planejar uma fuga com “Lorde X”. Cansado e percebendo que seu plano estava apenas tornando-o mais agressivo e distante, Patou decide se livrar do aristocrata, entretanto, é flagrado pelo antigo líder dos cafetões e acaba sendo preso por assassinar a “si mesmo”.
A partir daí a trama se torna deliciosamente absurda, repleta de momentos hilários.
“Irma La Douce” é descaradamente uma comédia, no entanto, há de se elogiar a capacidade de Wilder em inserir elementos de suspense e drama, por exemplo. A trajetória de Patou flerta com a insanidade e a sequência em que ele é perseguido pelo cafetão é digna de uma obra hitchcockiana.
A direção de Wilder é aprazível e fluida. Sua câmera se mantém quase sempre em uma posição confortável para os atores, variando entre planos americanos e fechados. Ele sabe exatamente como exprimir reações genuínas de seus intérpretes, posicionando a câmera estrategicamente, podendo optar por uma abordagem mais clássica – close up – ou por deixar o personagem em primeiro plano, expondo suas emoções apenas para o espectador.
Quando Irma se liberta de vez de seu antigo cafetão, Wilder reforça a sua imponência, utilizando um plongée. A sequência em que a polícia revista a casa da protagonista “vale o ingresso”. É tudo tão bem pensado, que os risos vêm não só pelo o que estamos assistindo, mas por percebemos a genialidade de Billy Wilder.
A montagem acompanha bem as passagens temporais e conversa diretamente com as ideias do diretor, potencializando tudo que ele já havia idealizado.
A trilha sonora se parece com a protagonista e o filme de um modo geral – alegre e vibrante.
O roteiro – também escrito por Wilder-, além de ser responsável por uma trama surpreendente e concisa, fornece aos seus atores diálogos e falas sensacionais. “Você não sabe nada sobre homens. Sabe por que? Você esteve com muitos”.
Gosto também do uso da narração no início, cuja voz repleta de ironia diz que a parte nobre de Paris dorme, enquanto o subúrbio é repleto de sentimentos, movimentos e corrupção.
Shirley MacLaine é uma das atrizes mais simpáticas, radiantes e versáteis de todos os tempos. Sua presença torna tudo mais colorido, agradável e fácil. É uma performance calcada no carisma de MacLaine, que utiliza todo o seu talento para o humor e para tornar Irma uma personagem emocionalmente frágil. A cena da dança é inesquecível.
Ao seu lado, nada mais nada menos que uma lenda, Jack Lemmon. Um dos raros atores que consegue, ao mesmo tempo, nos emocionar e fazer rir de chorar. Suas expressões faciais, mudanças de entonação e trejeitos são uma aula de caracterização de personagem. O arco de Patou é mais amplo e Lemmon cobre todas as arestas com a costumeira classe.
“Irma La Douce” não chega a ser um “The Apartment”, porém é mais uma grande obra na filmografia de um mestre.
O que você achou deste conteúdo?
Média da classificação / 5. Número de votos:
Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!