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Após a morte de Christine, a filha caçula, John e Laura passam um tempo em Veneza, onde ele restaurará uma Igreja.

Estável, o casal se vê tomado por uma tristeza imensurável, escondida atrás de rostos que evitam o luto escancarado. Sabemos que não está tudo bem, mas, de alguma forma, eles tentam escapar da dor, principalmente John, que mergulha no trabalho e em “discretas” doses de álcool para se “curar”.

Laura, em contrapartida, parece disposta a encontrar respostas e conforto no sobrenatural. Em um restaurante, duas senhoras observam atentamente o casal e revelam à moça que Christine estava entre eles, com sua capa vermelha – que usava quando morreu afogada.

Heather é cega e diz ter o dom de “enxergar” presenças ocultas. Laura desmaia e acorda feliz por escutar algo além do óbvio. Ela enfrenta o luto, se dilacera e tenta seguir em frente, sabendo que a regeneração absoluta é impossível. Cético, John se preocupa com a esposa, chega a rir de seu inusitado encontro, mas respeita sua dor.

Chega a ser irônico o fato do protagonista restaurar uma Igreja, afinal, não acredita em nada, a não ser naquilo que presencia, como, por exemplo, a morte da filha. Eles não falam a mesma língua, o que é ressaltado pela distância no quadro em determinados momentos e pelos desencontros.

O amor se sobressai, a conexão entre os dois é forte e bonita de se ver, seja em interações cotidianas, seja na famosa cena de sexo, que encanta pela maturidade e o conhecimento que um tem do outro, não pelo erotismo.

Diferentemente do marido, Laura não tem vergonha de ir atrás das senhoras, fazer perguntas e implorar por sessões sobrenaturais. John não é imune ao efeito da perda, é mais perturbado do que a esposa, vê e sente coisas que omite, guardando e remoendo internamente.

Heather diz que Christine lhe informou que algo terrível irá acontecer com John e que eles precisam deixar Veneza urgentemente. Alguns homicídios assustam os moradores da cidade e o inofensivo acidente de Johnny, o outro filho do casal, em Londres, são as coisas mais “estranhas” que acontecem. Há também uma sequência na qual o protagonista sobe em um andaime na Igreja e fica perto de cair, se segurando nas cordas.

De modo geral, nada acontece em “Don’t Look Now”. O terror está na psique dos personagens, que visualizam imagens e potencializam situações normais. O diretor Nicolas Roeg transforma o filme numa experiência onírica e atmosférica, utilizando variados artifícios para que o espectador compreenda o estado mental de John. O recorrente uso de câmera na mão, os inesperados e potentes zooms, os close ups e o slow motion oferecem uma dinâmica única à obra. Roeg nos informa, silenciosamente, que nada está bem e que o protagonista precisa de ajuda, preparando o terreno para o desfecho.

Os planos-detalhe dos corpos e do toque das mãos reforçam a paixão que une o casal. Na já mencionada sequência do andaime, o cineasta varia entre plongées e contra-plongées, dá ao espectador a noção do perigo e emula a instabilidade de John movimentando a câmera “instavelmente”.

O destaque para figuras religiosas tem a ver com o luto e a busca por conforto, mas também com a dificuldade do protagonista em confrontar seus demônios internos, não à toa, as estátuas destacam um aspecto bizarro.

Roeg é um artista preocupado com a ambientação e “Don’t Look Now” não seria nada sem o seu cuidado a todos os aspectos do fazer cinematográfico. Veneza é uma cidade labiríntica, repleta de becos escuros e apertados, pilastras e prédios decadentes. A fotografia banhada em tons acinzentados e azulados encobre as ruas esfumaçadas – ambientes fantasmagóricos. Se a água simboliza o maior pesadelo de John, pode-se dizer que ele está no inferno. Isso, somado à constante presença da cor vermelha tornam a sua existência um recorrente déjà vu – tudo remete a maior tragédia de sua vida. Laura quer retornar à Inglaterra, acredita na visão de Heather e o acidente do filho é o chamado final. John se mostra resistente, insistindo na “sanidade”, quando, na verdade, tem medo de voltar para casa e ser obrigado a confrontar o que atormenta sua mente.

Ele deixa a esposa no aeroporto e é pego de surpresa ao vê-la, horas depois, num barco com as senhoras do restaurante. O protagonista crê em uma espécie de conspiração, bruxaria ou até que as irmãs senis estão por trás dos misteriosos assassinatos e que Laura corre perigo.

A outra figura que assombra John é uma criança perdida com um casaco vermelho, muito parecido com o da sua filha. Chegamos a embarcar na jornada do protagonista – claro, Roeg faz o possível para transformar as senhoras em seres duvidosos e sinistros através de planos fechados e graças as excelentes interpretações. A garotinha é uma miragem, a reencarnação subconsciente de Christine. Nada disso.

Temendo estragar a experiência de quem leu até aqui, não sei se devo ir adiante. A perda nos torna frágeis, deprimidos, atormentados e inconsoláveis. O pior a se fazer é reter esses sentimentos e vestir a máscara da normalidade. Em vez de andar para frente, desabamos e estranhamos quem procura alento no improvável ou “inexistente”. Não se trata de uma busca por verdades absolutas, é apenas uma forma de se expor, de admitir o sofrimento, estancar a ferida e se libertar. John se prende, tem a imagem da filha afogada muito viva em sua mente e se ocupa em tarefas que não deveriam ser primordiais. Não estou aqui para julgá-lo, pelo contrário, seu grito no início, ecoado pelo brilhante trabalho de design de som, é suficiente para entendermos o tamanho do buraco que assolou sua alma. Entretanto, é ele quem precisa de um psiquiatra, não Laura. Aquela não era sua filha de vermelho, era o demônio/morte materializado por seu subconsciente. O protagonista tinha visto aquela figura no corpo de Christine e estava diante de sua versão mais sombria e assustadora, criada por ele mesmo – a soma das dores, emoções e memórias trancadas em seu peito.

Bem que Heather falara que John tinha o dom de prever as coisas, pois o filme termina com ela, sua irmã e Laura num barco – a exata imagem que ele havia visto, a premonição de sua morte.

A trilha sonora é espetacular, combina melodias tensas, melancólicas e belas.

Não é nenhum exagero afirmar que a montagem deste filme está entre as cinco melhores da história do cinema. O estudo da psique dos personagens é magistral, alcançado a partir de inserções “soltas” e flashbacks que mudam a conotação de uma ocasião “qualquer”. A expressão: “a vida passa diante de nossos olhos na hora da morte” nunca foi tão bem elaborada – essa cena consegue ser, simultaneamente, poética, linda e aterradora. Os raccords, eventualmente, aparecem e são elegantíssimos. O grito de Laura é abruptamente interrompido por uma britadeira, dando continuidade ao estrondo doloroso.

A montagem paralela acontece desde a primeira sequência, servindo à narrativa para elevar a tensão e a angústia. Longas caminhadas, como a última, por exemplo, são montadas de modo a que o espectador fique na ponta da cadeira, esperando por algo.

Os figurinos de cores quase idênticas salientam a tristeza do casal e acentuam as diferentes formas que eles enfrentam o luto. Nesse sentido, a bola vermelha de Christine, guardada com carinho por Laura é um detalhe que ajuda a diferenciá-los.

Julie Christie e Donald Sutherland estão perfeitos em seus papéis. Bela e doce, ela demonstra dor, afeto e aflição com muita propriedade. A maneira como mexe as mãos denota uma enorme inquietude. Ele, por outro lado, se mantém firme e intacto até o momento em que começa a alucinar. Ainda assim, Sutherland não desmonta sua persona, o desespero está em seu olhar perplexo e perdido, não em choros e gritos. Seu tamanho é proporcional à vulnerabilidade de John. A química entre os dois é marcante.

“Don’t Look Now” é um dos melhores filmes que já assisti. Uma obra prima hipnotizante e assustadoramente humana.

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