Devil In A Blue Dress

Easy Rawlins está com problemas para encontrar um emprego. Ele é negro, se orgulha por ter uma casa e sabe que precisa de dinheiro para mantê-la. As coisas mudam quando DeWitt Albright, um sujeito misterioso, lhe oferece um trabalho: encontrar uma mulher desaparecida.

O protagonista sabe que há algo esquisito na forma como seu contratante se expressa, no entanto, sua situação financeira fala mais alto. Easy embarca, então, em uma trama movida por reviravoltas, personagens que não são o que parecem e situações que colocam sua personalidade à prova.

Daphne Monet é a mulher de um político importante, que largou sua candidatura à prefeitura, graças ao sumiço dela. Quem é Albright? Carter o contratou? Por que Daphne sumiu? Seria Easy apenas um homem fácil de incriminar para futuros assassinatos?

Spoiler Alert!

Essas são algumas das perguntas formuladas pelo excelente roteiro, que apresenta soluções surpreendentes e satisfatórias.

“Devil In A Blue Dress” é um filme Noir. A fotografia que varia entre o escuro, o azulado e o esfumaçado, os figurinos – destaque para os chapéus e as gravatas -, a direção de arte, responsável por uma fabulosa reconstituição de época, a trilha sonora jazzística e a coleção de personagens deixam isso mais do que nítido. Easy é apenas um cara simpático, um veterano de guerra atrás de um emprego e, repentinamente, se vê acusado de dois assassinatos, além de ser constantemente agredido por pessoas que querem a mesma coisa que ele, ainda que o protagonista não faça a menor ideia do que isso seja. Easy está atrás de uma mulher misteriosa, que aparece às quatro da manhã com um vestido azul e demonstra segundas intenções. Ela é exatamente o tipo de dama que o gênero Noir pede – foge, seduz e aparece inesperadamente.

Assim como Evelyn Mulwray, de “Chinatown”, Daphne esconde algo importante, algo que a torna mais frágil, complexa e interessante (guardadas as devidas proporções).

O mesmo pode ser dito sobre DeWitt, que fala, age, agride e fuma como um antagonista Noir. A princípio, não sabemos de que lado ele está, contudo, seu jeito se torna cada vez mais escandaloso, tornando a exposição de sua motivação para perseguir Daphne apenas uma confirmação do que já sabíamos.

O roteiro consegue criar uma intriga política interessante, envolvendo escândalos que chegam a dar nojo. Entretanto, ainda que impressione pelo estilo, pelo vigor, pelos personagens e pelas reviravoltas, “Devil In A Blue Dress” é um Noir que se dispõe a discutir questões raciais. Easy é facilmente persuadido por DeWitt por não ter dinheiro, os policiais não medem esforços para incriminá-lo e o roteiro é sutil o suficiente para ressaltar essa relação a partir de diálogos repletos de “ofensas silenciosas”. Easy escuta bem cada palavra e abaixa a cabeça, sabendo que em sua condição a única coisa que importava era ter um emprego e sobreviver. Ele fala da casa como uma conquista grandiosa – e realmente é – já que poucos têm esse privilégio.

Não direi o que acontece, apenas que Daphne é a figura chave para a compreensão do que o diretor Carl Franklin queria passar para o espectador. E é no mínimo reconfortante ver o protagonista, ao final do filme, revigorado, feliz e disposto a abrir um negócio próprio. Talvez as coisas tenham mudado, talvez seja apenas uma fase.

Por sinal, o arco de Easy é interessantíssimo e Denzel Washington dá conta do recado com a habitual maestria. O ator transita do ingênuo e do conivente para o ardiloso – no bom sentido – e também para o agressivo sem qualquer empecilho. Sabemos quando Easy acha que está sendo esperto e quando tem certeza de que está à frente de seu oponente; sabemos quando ele acha que está seduzindo uma mulher e quando não tem dúvidas de que já a conquistou há tempos. Denzel muda não só o olhar e a entonação, mas também a postura, sua imponência a partir do segundo ato é notável.

O outro grande destaque é Don Cheadle, que surge como uma figura, simultaneamente, impulsiva, engraçadíssima e leal. Há dois momentos em que a situação parece tensa e Mouse muda o tom completamente, dizendo coisas hilárias. Cheadle não é um alívio cômico, é um ator talentoso que tem a capacidade de levar o filme a lugares inesperados. Sua química com Washington é incrível.

A direção de Carl Franklin é agradabilíssima. Ele utiliza travellings e movimentações de câmera que dão fluidez à trama e valorizam o ambiente idealizado pelo próprio. Os close ups aparecem apenas quando são fundamentais para gerar tensão ou revelar uma emoção significativa.

Há planos realmente estonteantes, Franklin imprime um ritmo jazzístico ao seu filme.

A fotografia, já mencionada, se aproveita das exigências do gênero Noir. Percebam que praticamente todos os ambientes são escuros, o que reforça a ideia de uma trama misteriosa e de que existem muitos segredos que o espectador desconhece. A falta de luz também pode ter a conotação da desesperança dos negros, constantemente atacados e menosprezados.

A trilha sonora é apenas correta, porém merece créditos pela bela e melancólica melodia que sustenta o caminho de Easy até o clímax.

A montagem é maravilhosa. Para explorar a mente e os sentimentos do protagonista – a narração também serve para isso, mas de uma maneira bem óbvia -, o montador sobrepõe imagens. Além de inventivo, o artifício é visualmente bonito.

“Devil In A Blue Dress” é um filme inteligente e artisticamente relevante que merece mais destaque.